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Matheus Pichonelli

Com tanta notícia ruim, alguém ainda consegue ser otimista?

Matheus Pichonelli

24/08/2017 04h00

Crédito: Ryan Kelly/The Daily Progress via AP

A pergunta do título é realmente uma pergunta. Não tenho a menor pretensão nem capacidade de sugerir caminhos ou respostas. Até porque, segundo o Houaiss, otimismo é a "disposição para ver as coisas pelo lado bom e esperar sempre uma solução favorável, mesmo nas situações mais difíceis". Eu não tenho a menor.

Vamos combinar: é preciso um grau considerável de alienação ou ingenuidade para ser otimista em pleno 2017. Atentado em Barcelona (e Londres, e Paris…). Ameaça nuclear. Crise dos refugiados. Promessas de fechamento de fronteiras. Venezuela em chamas. Xenofobia. Discursos de ódio. Manifestações de inspiração nazista nos EUA. Colapso político no Brasil. Reformas impopulares. Direitos ameaçados. Economia na pinguela.

"Todo jornal que eu leio me diz que a gente já era", cantava Raul Seixas na música Cachorro Urubu, lançada em 1973. Naquele ano, Richard Nixon tomava posse para seu segundo mandato nos EUA (caiu depois de grampear adversários), a Guerra do Vietnã completava 14 anos, Augusto Pinochet tomava o poder no Chile com um golpe militar e o Brasil vivia o período mais nebuloso da ditadura sob o comando de Emilio Garrastazu Médici.

Como hoje, nada indicava que a gente chegaria em segurança ao ano seguinte e o noticiário era um convite à desistência. Para que levantar o dedo, afinal, se o mundo pode se explodir no minuto seguinte?

A música de Raul Seixas mostra que o fim da linha é hábil em promover sobrevidas – pouco depois, era a vez de Belchior cantar que o desespero era moda em 76. Não que presentemente podemos nos considerar sujeitos de sorte, mas a sensação de mal-estar dos dias atuais talvez seja mais aguda do que em outros tempos em razão justamente do nível de informações ao qual estamos expostos.

Com um celular na mão, testemunhamos o tempo todo vídeos, imagens e relatos sobre atrocidades registrados também por câmeras pessoais e outros recursos. Consumimos tudo o tempo todo sem o tempo adequado para digerir. O resultado parece ser uma grande anestesia geral.

Lembra da expressão "santo de casa não faz milagre"? Com a internet, e o consequente encurtamento das distâncias e a ampliação do espaço de exposição, todo lugar virou a nossa casa, e para nossa surpresa ela não abrigava nenhum santo nem milagreiro. Eles só fazem sentido quando observados à distância.

Um exemplo é Donald Trump, que aos poucos se tornou a cara desses novos tempos. Se antes os chefes de Estado se posicionavam diante do público após horas de reuniões com equipe de especialistas (nem que fosse para anunciar uma balela), hoje o homem mais poderoso do Planeta, ansioso como seus contemporâneos, corre para o Twitter e se comunica com o fígado sem conseguir disfarçar a própria ignorância sobre temas que deveria dominar, inclusive a liturgia do cargo. Ou seja: até pouco tempo era possível dormir tranquilo mesmo sem saber o que fazer da própria vida, já que, nos palácios, igrejas, escolas e empresas alguém parecia saber o que estava fazendo. Hoje temos tantas informações sobre essas figuras "sagradas", nossos referenciais simbólicos, que é difícil transferir nossa confiança para elas.

O mesmo acontece com os antigos ídolos do esporte, das artes e até do jornalismo: em algum momento descobrimos que eles não são perfeitos, e para o amor/admiração virar ódio/decepção é uma fagulha. Ou um tuíte.

Não por acaso, tudo o que aparece como novidade, diferentão de tudo o que está aí, ganha (e perde) rapidamente a alcunha de "mito" ou salvador da pátria. Queremos acreditar que alguém realmente, com uma cartilha em mãos, jura ter respostas simples para um mundo complexo, e assim criamos uma mitologia própria para minimizar a nossa sensação de desamparo. Acredita quem quer, desacredita quem tem juízo.

A boa notícia é que, com esse nível de informação, conexão e possibilidades de mobilização, está surgindo uma geração, parte dela nascida após o ano 2000, muito mais articulada para discutir questões como diversidade, tolerância e mundo sustentável. Há uma mudança visível de postura, discurso, e comportamento em relação à minha turma, formada nos anos 1990, uma época em que alguns absurdos, como a simples exclusão das diferenças, eram comuns, aceitos e naturalizados.

Este novo momento pode estar representado na cena final do filme "Hoje eu quero voltar sozinho", de Daniel Ribeiro, quando os indivíduos deslocados do grupo deixam de ser os meninos diferentes, represados pela própria vergonha da sexualidade, e sim quem caçoa dessas diferenças. Com isso novas possibilidades de amor e acolhimento se abrem.

As agressões, distâncias, exclusões e perseguições, hoje expostas, notificadas discutidas, ainda são elementos suficientes para a desolação, dada a distância que ainda temos a percorrer, mas já não perpetuam sua crueldade sem o grau de indignação e respostas como vimos em Charlottesville ou Barcelona após o desfile de absurdos das semanas passadas. O simples fato de provocarem choque já diz muito sobre os valores inegociáveis do mundo atual.

A verdade é que, antigamente, o nosso mundo era delimitado até onde nossa visão alcançava. Hoje, com a ajuda das ferramentas tecnológicas, podemos visualizar, mal e mal, os limites e contradições de um mundo em que todos podem participar, todos querem ter espaço e todos exigem direitos. Essa é parte da boa notícia. A má é que quem tinha privilégio e agora se sente ameaçado com as mudanças (inclusive nas formas de produzir e distribuir riquezas) vai reagir cada vez mais – alguns já se perguntam se essa demonstração de força é a retomada de uma hegemonia, a parte visível de algo que sempre existiu e estava apenas escondida ou o último grito dos desesperados.

É difícil achar uma resposta, mas uma coisa parece clara: ela não virá de cima para baixo ou por intermédio dos velhos ou dos novos mitos, heróis, ídolos ou salvadores. O desafio está nas mãos de um poço de contradição, transformação constante, dúvidas e limitações. Nós mesmos.

Pensando bem, a premissa do título não é sobre manter ou não o otimismo, algo mais relacionado com a esperança do que com a ação. Trata-se de algo maior: a busca (ou resgate) da potência de agir.

Meu palpite é o mesmo de Raul Seixas em 73. A gente ainda nem começou. Para o bem ou para o mal.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.