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Matheus Pichonelli

História de amor não resiste à senha Bolsomito2018 no wi-fi

Matheus Pichonelli

29/08/2017 04h00

Crédito: Sergio Lima/Folhapress

Histórias da vida real. A irmã de uma amiga terminou o namoro depois de sete anos. Nos últimos tempos, a afinidade dos primeiros meses havia se transformado num repertório de DRs e problematizações de todos os tipos, dessas que no começo atrapalham a vida a dois e com o tempo se tornam a desculpa perfeita para fazer de tudo, menos estar junto.

Após a separação, ela passou uns dias na casa dos pais, no interior, e fez o que a Organização Mundial da Saúde deveria recomendar a não fazer: voltou a sair com um antigo vizinho, caso da adolescência (uma época em que ninguém chamava caso de crush), a quem os deuses preservaram os esplendores colegiais, provavelmente porque mantinha intacto o hábito de jogar bola e nadar, dia sim, dia não, na piscina do clube – com a diferença de que já não corria pelos corredores trocando soquinhos com os amigos, pensava ela.

Foi um reencontro mais ao estilo Paixão Antiga, do Tim Maia, do que O amor nos tempos do cólera, do Gabriel Garcia Márquez. Bastava um encontro, um abraço e pronto: começava tudo outra vez. Era bom, ao menos uma vez na vida, ouvir alguém falar com tanta paixão sobre a velha moto, um tema, em tese, pouco propício a problematizações e DRs.

Tinha tudo para dar certo, e certo estava tudo estava até que, na casa do rapaz boa praça e sem as esquisitices do último namorado, ela perguntou qual era a senha do wi-fi. "Bolsomito2018", ele respondeu.

Foi o suficiente para que ela guardasse aquela história prestes a explodir a sete chaves. Durante a semana, voltava a São Paulo, de onde recebia telefonemas e fazia planos para o futuro. Um desses planos era que ele conhecesse os amigos dela da capital. "Nesse fim de semana não dá". "Estou cansada". "Melhor outro dia".

Tinha vergonha de surgir na roda dos amigos com um fã do Bolsonaro. O que ele seria capaz de dizer na roda? Falaria sobre o passado glorioso sob a batuta militar? Usaria a palavra "top"?

Das memórias da adolescência não havia nada que indicasse alguma inclinação que o levasse a, depois de velho, abraçar um candidato que chama refugiados de "escória do mundo", faz elogios a torturador, hostiliza gays e negros e diz para colegas da Câmara que estupro é questão de beleza e merecimento.

Pelo contrário: na adolescência ele não demonstrava interesse por política ou outro assunto que não fossem a moto ou os longos cabelos compridos. Dos tempos remotos, lembrava de quando se comunicavam pela parede do apartamento, quando ele propositalmente colocava música alta, romântica, para ela ouvir e captar seu estado de espírito. E de quando, mal tirara a carteira de habilitação, a convidou para passear na moto, tomar sorvete e colher flores no parque da cidade – todas destroçadas no caminho de volta pelo vento e pelo sol, o que rendeu a ele um sorriso sem graça atrás dos óculos escuros espelhados que ela nunca mais esqueceu.

Passou o tempo e ela se convenceu de que a senha pudesse ser só uma brincadeira. Na dúvida, resolveu não perguntar. Em pouco tempo, estreitavam a intimidade, a ponto de um estourar as espinhas das costas do outro no sofá, e passaram a circular de mãos dadas na casa dos pais.

Talvez se ninguém tocasse nunca no assunto "eleições 2018" aquele novo velho relacionamento pudesse, quem sabe um dia, ficar mais sério. Eram, agora, adultos, afinal.

Até que, semana passada, na casa dos pais, a mãe da minha amiga bebeu umas a mais e perguntou o que os filhos, acompanhados dos namorados no outro quarto, andavam escutando no Spotify. Fez um desafio: queria ouvir alguma música brasileira nova. Não nova tipo A Banda Mais Bonita na Cidade, um fenômeno dos (distantes) anos 2000, mas algo lançado no mês passado, quiçá na última semana.

Cada um da sala começou a puxar pela memória a lembrança mais fresca da nova música brasileira. Quando chegou a vez do novo velho amigo, o que se seguiu foi um discurso pronto sobre seu boicote a tudo o que foi produzido de 2000 para cá.

A opção estética tinha um fundo político: segundo ele, tudo o que foi produzido desde então era financiado por ideólogos de um plano esquerdista com linguagem bolivariana e doutrinação lulopetista. Como as escolas. E as editoras. E as universidades. E as revistas (todas). E a Globo. Até Tulipa Ruiz, segundo ele – o fenômeno mais recente que conseguiu pensar.

O discurso, assistido com assombro pela família, foi a gota d'água. O vô da minha amiga, já suficientemente desgostoso com a juventude, saiu da mesa corado.

"É encrenca", disseram os poucos amigos com quem ela teve coragem de se abrir. Se uma simples música de amor era motivo de censura, pesava ela, o que dizer quando os temas embrenhassem por terrenos mais espinhosos, como a escola dos filhos ou a farsa, proferida por um certo astronauta soviético, de que a Terra era azul e – pior – redonda.

Respirou fundo e decidiu se afastar antes que a história ficasse grave (até o fechamento deste post, o rapaz andava mal e ela pensava seriamente em viajar por uns tempos para qualquer lugar do mundo que não a casa dos pais). O que o amor da adolescência uniu, as eleições 2018 já separam.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.