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Matheus Pichonelli

Como fazer a cabeça desligar depois do horário comercial?

Matheus Pichonelli

06/09/2017 13h41

Tem sido um erro recorrente. Um erro, não: uma receita cumprida à risca em direção ao fiasco. Encerrado o expediente, sigo no celular, em casa ou no ônibus, caçando novidades ou esticando conversas que, quase sempre, giram em torno do trabalho ou possíveis ideias de trabalho. Tudo devidamente abastecido por um galão de café expresso ao longo da tarde e a ideia brilhante de deixar alguma tarefa engatilhada para resolver no dia seguinte.

Cena do filme A Grande Aposta (Reprodução)

Pronto: é chegar em casa e permanecer acelerado, sem a menor possibilidade de passar dois minutos em silêncio sem ter o pensamento atravessado por alguma urgência, algum ruído, alguma coisa que ficou para trás (adiante mesmo só a sensação de que o mundo vai acabar, com dois malucos sentados em suas respectivas bombas atômicas separadas pelo Pacífico e uma batalha, travada por aqui, entre um presidente que vive ainda no Plano Cruzado e um pilantra que ficou rico comprando todo mundo sem ter capacidade para manusear um gravador).

Pilhado, ando de lá para cá conectado a uma infinidade de fios, índices e informações, mais ou menos como o personagem que, da sua baia, já não distingue trabalho, entretenimento e descanso interpretado por Christian Bale no filme A Grande Aposta

Vou para a janela, tento observar a lua; volto ao celular. Brinco um pouco com meu filho, que logo é cooptado pelos amigos da rua e vai brincar na quadra – e me deixa, o ingrato, sozinho com todos os pensamentos que deveriam me atormentar apenas em horário comercial.

Como desligar?

Séries, penso eu. Mas qual? Logo a solução vira uma grande sensação de má escolha. Por que ver essa com tanta coisa para ser vista? Tento um denominador comum entre os fãs de alguma série e os haters de fãs de série e o resultado é uma soma zero de vetores. Sigo, assim, onde estou, e as séries seguem acumuladas como as pilhas de livros e revistas jamais lidos depois da segunda página.

Na geladeira tem um rescaldo de cerveja da última festa, mas só de pensar em recorrer a elas uma protuberância adiposa salta no entorno do umbigo; logo me imagino, no presente, como um fantasma de mim mesmo no passado: um tiozão do churrasco atrás do avental que só pega no sono regado a cerveja de milho e linguiça de porco.

Vou apertar, penso comigo, mas não vou abrir a latinha agora, plena terça-feira, amanhã preciso acordar cedo para deixar tudo pronto se quiser ter um mínimo de paz no feriado prolongado.

O celular envia notificação. Viu a denúncia do Janot? Viu o bolo de dinheiro do Carainho? Não vai escrever nada sobre isso?

Que futuro pode ter um país que não consegue contabilizar os recursos desviados antes de encerrar o horário comercial?

Abano o anjo e o capeta das minhas orelhas que mandam escolher entre a bebedeira e o textão sobre a conjuntura, mas recorro a uma ideia pior: pedir ajuda (seria atenção?) no Facebook. O que vocês fazem para a cabeça parar de funcionar?

Solícitos, os amigos enviam os sinais da salvação. Arrumar a casa. Correr. Medicamento (leve). Escrever. Cozinhar. Observar formigas. Meditar. Arremessar amendoim para cachorro. Tomar uma overdose de YouTube (segundo uma grande amiga, uma Netflix sem tramas nem compromissos). Desligar o celular. Ler alguma coisa impressa. Jogar jogos de raciocínios. Assistir aos mais de cem gols daquele timaço de 96. Origami. Novela. Novela antiga (tem no YouTube também). Fuçar as pessoas no Facebook. Tocar um instrumento. Pintar. Nadar (por que parei com a natação?). Pedalar. Fotografar. Pilates. Yoga. Deitar na cama e tentar não conferir nada no celular por dez minutos. Colorir livros. Cápsulas de gaba. Playstation. E, claro, sexo.

Pelo horário e pelas condições de temperatura, pressão e distância, nem todas as opções eram possíveis. Na TV, passava Califórnia, filme da Marina Person; liguei justamente na cena em que a protagonista corre para a casa do amigo ao som de The Caterpillar, do The Cure. Foi a ideia para buscar em seguida, na lista dos filmes gravados, a sequência final de A Grande Beleza, com o Kronos Quartet tocando Beatitudes enquanto a câmera segue sem rumo pelo rio em Roma.

Assim, sem disposição ou paz de espírito para encarar um filme por inteiro, recorri às cenas finais para ouvir um pouco de música e respirar. O cinema tem dessas vantagens: ao menos recria uma noção de ponto final, e não de vírgula ou ponto e vírgula, essas pragas que nos tiram o sono na vida real.

Consegui, enfim, me entreter, como se fosse o cachorro da minha amiga e as cenas finais, os amendoins.

Só por hoje. Um dia por vez, repetia comigo, como um viciado diante do sequestro de recompensa cerebral causada por todas as conexões, notificações e e-mails disponíveis num polegar.

Para minha surpresa, apaguei antes das dez da noite, sem tempo de conferir as mensagens que seguiam chegando madrugada adentro para me ajudar a embalar no sono.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.