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Matheus Pichonelli

Filha do medo, a raiva é mãe da covardia

Matheus Pichonelli

20/10/2017 04h00

O grito, de Edvard Munch

O grito, de Edvard Munch

 

O título desta coluna está na música "As Caravanas", possivelmente a melhor composição de Chico Buarque desde "Construção".

Ela mostra que, em tempos sombrios, é preciso saber quando o medo começa a pautar nossos afetos. A covardia é, de fato, um grande sinal e tem sido recorrente nas ações e discursos de quem se assusta, e finge não se assustar, com a própria estupidez: o humorista das piadas de quinta série que só tem prestígio com alunos que estão ou jamais saíram da quinta série (são muitos, mas isso é outra história); o ator que não consegue um bom papel desde a Copa de 94; o roqueiro que fala demais porque a língua já não produz qualquer outro som.

Eles não têm culpa da própria mediocridade, mas entendem que a culpa é minha, sua ou de quem ousa furar a bolha de seus pedestais imaginários. Como pensar é desconstruir as zonas de conforto e eles são incapazes de argumentar, é mais fácil eliminar quem promove os contrapontos do que enfrentar as suas fragilidades e inseguranças.

Cazuza tinha um antídoto para essa gente careta e covarde: a piedade.

Hoje, ao ver que eles são muitos cavalos, temos medo, e quando entramos nesse jogo é porque já perdemos a batalha para a raiva e a covardia.

E não só nas redes. A menos de um ano da eleição, o medo começa a tomar as vestes de projetos políticos. Segundo leio por aí, nossas famílias estão sendo destruídas, professores querem doutrinar nossos alunos, museus são parte de um plano malévolo para atiçar a perversidade infantil, artistas querem propagar a libertinagem, as drogas, a desordem. Falta muito pouco para começarem a queimar livros.

Apavorados, corremos o risco de cair na conversa e trocar o pouco de liberdade que ainda nos resta por cartilhas e algemas. Flertamos com a censura e a patrulha sem perceber que isso já é um modo de morrer.

Mas o medo não está só na fala de quem cria inimigos para disfarçar a ausência de ideias ou projetos.

Está na nossa linguagem, no noticiário, na propaganda. O medo vende mais do que as promessas de felicidades. Tempos atrás me assustei (ato falho) ao ver a propaganda de um site de imóveis que mostrava uma mulher observada da janela por vizinhos estranhos e um cachorro com cara de psicopata (a princípio a mensagem era "compre outra casa antes que o pior aconteça"). Ou o anúncio do automóvel em que o sujeito  via os braços, pernas e o resto do corpo desaparecerem quando se afastava do volante.

O imperativo é sempre o medo da subtração. Não perca a chance! Vai ficar de fora? Nas entrelinhas vemos o perigo de não ter e não ser, os riscos de nos tornar sujeitos desajustados, deslocados, impróprios para consumo. (Estranho: no meu tempo ser "fora de série" era elogio).

Assim, passamos metade da vida nadando em direção às promessas contidas no carro do ano e a outra metade com medo de perder o que nos afirma como identidade. Daí a raiva de quem não tem mais nada a não ser o medo de tudo o que nos soa como ameaça – dos moradores do bairro vizinho às opiniões de quem não vê sentido numa vida assim.

Filha do medo, a raiva é mãe da covardia, alerta a canção – e também os poetas e pensadores de outros tempos. "Minha mãe pariu dois gêmeos. O medo e eu", escreveu Hobbes. "A covardia é mãe da crueldade" ensinava Montaigne. Sobre seus "resplendores covardes" Carlos Drummond de Andrade fez um de seus mais dolorosos poemas: em verdade, dizia, temos medo, pois nascemos no escuro. "Fomos educados para o medo. Cheiramos flores de medo. Vestimos panos de medo".

No Brasil de 2017 há quem tenha medo até de artista nu; outros têm medo de quem tem medo de artista nu, outros têm medo de quem tem medo de quem tem medo de quem tem medo de artista nu e assim vamos gritando contra espantalhos enquanto no centro do poder discute-se modos de facilitar o trabalho análogo à escravidão, o perdão da dívida de pilantras e a salvação de quem se meteu onde não deveria.

É difícil acompanhar e digerir tudo? É. Mas observe a imagem do senador que, graças à generosidade sincera e desinteressada dos colegas, acaba de escapar da degola. Atrás da cortina, apavorado com o movimento em frente de casa, era o retrato de quem já não pode circular pelas ruas e observar as pessoas de frente, olho no olho. Como ele, muitos venderam medo como projeto político. Agora mal podem sair de seus porões (mesmo em suposta liberdade). Valeu a pena?

Em uma época de pesadelos, não deveria ter nada mais aterrorizante do que o medo da luz do sol. O resto é covardia.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.