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Matheus Pichonelli

Não perca tempo. E tenha a vida mais sem graça que você (não) sonhou

Matheus Pichonelli

25/10/2017 04h00

Matthew Mcconaughey em cena do filme O Lobo de Wall Street

Matthew Mcconaughey em cena do filme O Lobo de Wall Street: exemplo de homem-meta

 

Imagine a cena. Aos seis anos de idade, o adulto te pergunta o que você vai ser quando crescer. "Uma meta", você responde, já com o olho no futuro.

Isso mesmo, uma meta. Se tudo der certo, vai concluir o ensino médio, entrar na faculdade aos 18, conseguir um estágio aos 19, aceitar os trabalhos burocráticos até os 21 e fingir que, mesmo mal remunerado, está disposto a aprender. No fundo vai cobiçar diariamente a cadeira dos mais velhos. Até conseguir uma. Uma não: várias.

Na parede de casa, nada de pôsteres de filmes, banda favorita ou escritores, mas um mantra da vida corporativa: treine enquanto eles dormem, estude enquanto se divertem, persista enquanto descansam e então viva o que eles sonham.

Eis um homem-meta, dirá você ao espelho. Barba bem-feita. Camiseta bem alinhada. Cavalo gigante no peito. Todos os livros sobre como otimizar o tempo nas prateleiras – o que elimina os clássicos da literatura, escritos na época em que sobrava tempo para questionar quem somos e para onde vamos. A meta é um cálculo exato e não permite dúvidas. E a literatura não serve para nada a não ser confundir.

O homem-meta também não gosta de esporte, sobretudo o futebol, porque (repete com o peito estufado) não vê sentido em uma atividade que drena recursos e energia enquanto os jogadores enchem o bolso de dinheiro e blablabla.

Aos poucos a meta profissional se torna uma muleta da vida privada. Se antes parecia um bom negócio fazer um social, estender relacionamentos, trocar cartões de visitas, logo percebemos que é melhor evitar o conceito de amigos, tipos excêntricos dispostos a jogar conversa fora até nos dias úteis.

O álcool e os amigos nos desorientam, e eles são dispensáveis quando a vida exige força, fé e foco até mesmo para transformar a caminhada diária em disposição e enfrentar um dia todo no computador observando números, desempenhos, perdas, projeções – vai ver por isso adoramos as esteiras de corrida e seus painéis sobre o quanto evoluímos em quilômetros e queimamos em calorias enquanto treinamos, enquanto eles descansam, enquanto eles sonham.

Quanto você faz? Quanto você bateu? Quanto você conseguiu? Quanto você ganhou?

Sem distrações afetivas passamos a vida administrando metas sem tempo a perder quando alguém pedir um abraço preguiçoso num sábado ensolarado (não dá, às oito tenho aula), para dar um passeio sem pretensões pelo parque (não dá, tenho uma conferência) ou ouvir aquela música que nos remete à infância (não dá, passei a infância ouvindo podcasts de superação).

E, entre tantas metas a bater com tão pouco tempo para se dedicar ao que não dá retorno – tipo fazer sexo sem finalidade de procriação – as pessoas que deveríamos amar também se tornarão entrepostos perigosos de distração a serem evitados.

Até que um dia, enquanto corremos na esteira e analisamos o desempenho dos nossos investimentos, vamos rir dos amigos que perderam tempo e dinheiro – chamamos de custo de oportunidade – naquele show do U2 de 2017, que nos poupou de ouvir groselhas sobre um mundo melhor, mais feliz, mais tolerante e mais sonoro.

E, percebendo o insight, e sem ninguém para compartilhar a lição, escreveremos para os nossos seguidores: Bono Vox e seu sentimento de superioridade moral ficaram para trás. Ídolo agora é Donald Tump, que em vez de vender sua propaganda politicamente correta nos diz a verdade. E a verdade é um rosto alaranjado mentindo freneticamente nas redes, sem meias palavras, latindo, chutando, dizendo, em bom inglês, que farinha pouca meu pirão primeiro, America First, só o muro salva, o resto é hipocrisia, coisa de maricas.

Em vez de falar em mundo melhor, prometeu esmagar a concorrência! Homão da porra.

Por isso ficou rico.

Por isso virou presidente.

Olha lá o exemplo que essa molecada deveria ter.

E então, com Trump no peito e uma meta na cabeça, podemos viver o que eles sonham. Mas o que sonhamos?

Com certeza nada do que imaginávamos aos seis anos. O que nos tornamos, no fim, é um velho refrão de uma outra música. Caminhamos para a morte pensando em vencer na vida. Sozinhos, sem amigos, amores ou presidentes dos EUA para invejar nossa lápide quitada a prestações: aqui jaz uma planilha.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.