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Matheus Pichonelli

O que explica nosso fetiche macabro com os "atrasados do Enem"?

Matheus Pichonelli

06/11/2017 13h19

Perfil no Twitter faz troça de quem se atrasou para o Enem

Perfil no Twitter faz troça de quem se atrasou para o Enem

 

Tenho um misto de culpa e vergonha quando, 15 anos depois, me lembro o que me tornei ao fim da fase do vestibular. Lembro de um jovem arrogante, cheio de si, que contava vantagens nos grupos de amigos, circulava até no banheiro com a camiseta da universidade e falava em voz alta, em momentos impróprios, como para validar uma distinção, conceitos que mal acabara de aprender.

Naquela idade, eu não era mais o Matheus, era o Matheus da universidade X.

Logo me tornei o Matheus do site onde era estagiário.

Depois o Matheus da empresa que me contratou.

Não tinha sobrenome, mas um nome acompanhado de um slogan corporativo. Um nome que não era meu.

Hoje, vendo os urubus que se divertem com o atraso de jovens vestibulandos no dia do Enem, começo a compreender o porquê daquela minha zona mista de arrogância e insegurança.

Na fase pré-vestibular, encarava aquelas provas como a força centrípeta para romper um ciclo perverso. Nesse ciclo, os adultos apostavam em nossos fracassos como quem ri dos que escorregam numa casca de banana – aquele riso aliviado de saber que aquela dor não é nossa, mas de outro infeliz.

Em tom sério, diziam que a prima da irmã do cunhado estava estudando medicina.

O vizinho da tia da Severina fizera todos os pontos possíveis em matemática.

Outro já dava palestras em Harvard e ganhava tantos mil por mês.

Já o beltrano, diziam sem conter o riso, passou tempo demais comendo batata frita com os amigos e olha agora: cinco anos seguidos de cursinho.

"Era tão inteligente, mas na hora da prova amarelou", ouvia alguém dizer, atrás de um sorriso alegre, sobre outro infeliz da vizinhança.

Amarelou. Fracassou. Não conseguiu.

Para ajudar, os métodos de incentivo para quem vislumbrava "ser alguém na vida" eram pautados por professores que traziam para a sala de aula os alunos de anos anteriores que agora projetavam espaçonaves na Nasa, construíam pontes sobre o Pacífico ou eram laureados com o Nobel da Química. Os rostos deles, todos pintados no trote, eram a mensagem inversa das cabeças do bando de Lampião no corredor da escola.

Na hora H do Dia D, lembro do ônibus que nos levava até outra cidade para fazer a prova. No caminho, parecíamos soldados em direção a uma trincheira, tentando quebrar a tensão com músicas e com as brincadeiras mais idiotas. Na volta, contávamos mortos e feridos pelas armadilhas de múltipla escolha.

Era tanto peso que, quando tiramos das costas, já não nos preocupamos com o passo seguinte ou com o alerta de Raul Seixas: "eu devia estar feliz por ter finalmente vencido na vida mas eu acho isso uma grande piada e um tanto quanto perigosa".

Em vez disso, eu me lembrava de cada agouro ouvido desde que pisei no colegial e me protegi numa capa de arrogância que me causa vergonha até hoje. Essa culpa é também um peso com o qual, naquela idade, não sabia lidar.

Pudera. Certa vez, na formatura de Odontologia de uma consagrada faculdade, ouvi um coordenador fazer loas aos que conseguiram entrar naquele curso e, mais ainda, aos que conseguiram terminar aquele curso. O triunfo era uma estatística enviesada: "vocês representam 0,000000000001% de uma casta de vitoriosos". Nada, nenhuma palavra sobre a missão que os formandos enfrentariam, a partir dali, em um país de banguelas em que 0,000000000001% da população teria acesso a um tratamento odontológico decente.

Pudera (2). Era tão difícil subir ou nos segurar na sela daquele cavalo bravo da vida pós-vestibular que pouco importava para onde íamos. Para uns, a vida terminava exatamente ali, rodeada por conquistas individuais, sem ajuda de ninguém, sem necessidade de transformação – e ai de quem ameaçasse arranhar aquela autoimagem (a democratização do acesso à universidade é uma ferida narcísica para quem compreende educação como um filtro de privilegiados, mas isso é outro assunto).

Fico imaginando se, em vez de levar cadeiras e câmeras para acomodar seus fetiches pelo atraso alheio, as pessoas se reunissem na porta dos colégios para aplaudir quem se esforçou para chegar até aquele portão, atrasado ou não, sem enlouquecer.

Se nos lembrassem, de vez em quando, que tudo era uma questão de manter a espinha ereta, a mente quieta e o coração tranquilo.

Se, em vez de preencher folhas em branco das nossas expectativas com as histórias dos vencedores – aquele primo da tia da irmã que talvez nem exista – esses consumidores ávidos por memes corretivos fossem um pouco mais generosos.

Quem sabe assim a gente tivesse de fato a maturidade para pensar em canais de acolhimento com os que terão a vida toda para encarar depois do vestibular, tenham o nome ou não na lista dos aprovados. Isso nos pouparia de ler nas redes hashtags do tipo #ShowdosAtrasados ou sentenças como "Esse negócio dos 'atrasados do ENEM' foi o melhor programa social da história do Brasil. Pessoal com medo de virar chacota aprendeu a acordar mais cedo e chegar no horário".

Raciocínios como este são antes a causa do que a consequência de nossa educação debilitada.

Enquanto a história só abrigar a lógica binária de vencedores e vencidos, a nossa única possibilidade de gozo será uma alegria vazia sobre a tragédia alheia, mais ou menos como fazemos na arquibancada: em vez de apreciar a vitória, gritamos CHUPA para os derrotados. É muito pouco.

Esse comportamento mesquinho diz muito sobre a seriedade com que encaramos as nossas escolas. Não é de se estranhar que, depois de velhos, nos sentemos nos diplomas da legitimidade para proferir sentenças que desprezam noções básicas de respeito e direitos humanos em uma redação (não, isso não é uma questão de dupla escolha, direita x esquerda).

Uma educação libertadora deveria ser um espaço sagrado de alteridade e acolhimento.

Esse país que ri dos infortúnios de quem mal adentrou a vida adulta é o mesmo que ensina a sobreviver, e não a viver, em uma competição predatória permanente antes e depois do vestibular.

Na fila para a prova, entre risos dos que se divertem do nosso atraso, caminhamos todos para o abate sem perceber que a solidariedade é o primeiro valor que se perde nos funis da nossa má educação.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.