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Matheus Pichonelli

Será que o ministro considera recorde de assassinatos LGBTs um privilégio?

Matheus Pichonelli

04/12/2017 20h06

Foto: Alan Marques/Folhapress

O senhor tem um minutinho para ouvir a palavra do homem hetero que está virando minoria?

Se não virou uma seita, a corrente está formada, e ela se manifesta à boca pequena, entre pessoas a quem toleramos a ignorância, e também nas brincadeiras de sempre, muitas vezes perpetradas por quem conhece, ou deveria conhecer, a noção de Justiça, direito e acesso a direito. Caso, podemos imaginar, do ministro João Otávio de Noronha, do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e atual corregedor nacional de Justiça, que acaba de reivindicar seus privilégios de homem hétero, "porque os heterossexuais estão virando minoria", enquanto "os héteros não têm direito nenhum".

Toda vez que se manifesta a corrente dos homens heterossexuais "sem direito nenhum" me lembro da entrevista que realizei há alguns anos com um vereador de São Paulo que elaborou um projeto para instituir o Dia do Orgulho Hetero na cidade.

A proposta, segundo ele, era parear com a comunidade LBGT o direito de ter um dia para desfilar o próprio orgulho.

O autor da proposta dizia, em seu argumento, sofrer muito preconceito por ser heterossexual e religioso. Só não soube responder em que momento correu risco de ser atacado com correntes e lâmpadas fosforescentes por desfilar por aí com uma Bíblia debaixo do braço. Ou por andar de mão dada com a pessoa amada e ouvir grosserias, ameaças ou violência em lugares públicos – ou qualquer lugar além do confinamento do armário.

(Mais ou menos na mesma época, um pai teve a orelha mordida e arrancada por andar de mãos dadas com o filho, o que levou o agressor a imaginar que se tratava de um casal gay).

Ainda assim, sempre há quem acuse grupos em busca de autoestima, visibilidade e acolhimento de serem "privilegiados" por terem um Dia do Orgulho Gay.

O ministro do STJ, mais novo membro do clube do privilegiado confuso, bem poderia contar quantas vezes alguém foi atacado física ou verbalmente, em casa ou no ambiente profissional, por dar pinta demais da própria heterossexualidade.

Difícil imaginar que um ministro do STJ esteja, a essa altura do campeonato, desinformado, mas nunca é demais lembrar que quem é acusado de ter privilégio no país é justamente quem mais morre em razão da própria orientação sexual. Pois o Brasil é o país que mais mata LGBTs nas Américas, de acordo com o último relatório da ILGA (Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais). São 340 mortes por motivações homofóbicas em 2016.

Esse "privilégio" é resultado das inúmeras violências e omissões perpetuadas nas escolas, nas famílias e no mercado de trabalho, onde barreiras visíveis e invisíveis determinam quem pode ou não viver sem riscos de ser arrebentado pela vergonha, o constrangimento ou a porrada. Essa tragédia, caro ministro, não decorre do excesso de visibilidade ou acolhimento.

Se chegamos ao ponto de ouvir de um magistrado que tal cenário é decorrente de privilégios, é porque já perdemos, há muito, a confiança no conceito de Justiça.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.