Topo

Matheus Pichonelli

Da apatia à depressão: os alertas de que precisamos de ajuda

Matheus Pichonelli

27/12/2017 08h00

O diagnóstico me dá um ponto de partida: não, minha apatia não era preguiça ou melindre (Foto: iStock)

 

Alerta 1. Um conhecido, com quem até então só trocava ideia sobre futebol, pergunta se quero assistir a um vídeo de um "pessoal que não gosta de trabalhar". Imagino que seja algum post nonsense, desses que a gente vê, ri e pensa "mas é muito tempo sobrando". Me aproximo. O "pessoal que não gosta de trabalhar" são dois meninos abordados por um veículo enquanto caminham por uma rua deserta. Uma câmera de segurança acompanha a cena. Homens de preto descem do carro, seguram os rapazes pelo braço e disparam. O veículo desaparece e no momento seguinte vemos um aglomerado de gente aplaudindo a ação porque os garotos, de não mais de 15 anos, supostamente haviam assaltado um supermercado — embora aparentemente não houvesse armas com eles. O conhecido com quem até então eu só falava sobre futebol parece vibrar. "Tem gente que ainda defende esses anjinhos". "Não matarás", penso comigo. E me pergunto em que momento se tornou um exercício didático matar alguém para ensinar alguém que não é certo roubar. Passo horas, dias, tentando saber se aquele gatilho desencadeou ou apenas acelerou, entre tantos outros episódios, a morte de algo fundamental também em mim.

Alerta 2. Em uma festa de formatura começa a me faltar fôlego. Vejo os formandos adolescentes, crianças até ontem, cruzando o salão descalços em fileira, as mãos sobre os ombros uns dos outros, como num trem. Pulam de alegria. E eu só consigo pensar que mesmo os instantes de alegria são resultado da ignorância sobre o que está por vir. Faço força para lembrar da minha formatura, mas aparentemente tenho um bloqueio. Consigo apenas imaginar a minha turma alguns anos atrás e onde aquela fileira foi parar: uma amiga se matou, outra está (literalmente) desaparecida, outros ficaram enferrujados com o tempo. Lembro dos meninos do vídeo. Concluo que para acessar um direito à infância, e as alegrias que ela ainda permite, é preciso nascer no lugar certo, na família certa, com a cor da pele certa. Saio para tomar um ar e sento numa espécie de sarjeta. Passo não sei quanto tempo com o olho no celular, as mãos na testa. Uma formanda, com óculos de plástico cor-de-rosa e tiara em formato de antena, me pergunta se estou bem. Digo que sim, só precisava respirar. Ela parece querer oferecer um abraço, mas recua.

Alerta 3. É o terceiro dia que não chego perto dos jornais. Há semanas encaro apenas os destaques da primeira página. Para quem trabalha com jornalismo, é como esquecer de tomar café pela manhã. O mesmo acontece com os livros. E com os filmes. Nas redes, fico em dúvida se me irrito com as notícias ou com o tom alarmista de quem compartilha as notícias. Sem qualquer certeza sobre onde estou, começo a me irritar com as certezas de quem tenta me convencer a ir para qualquer lugar. Começo a acreditar, conforme nove em cada dez relatos, que o futuro é um asteroide salvador. Sem avisar ninguém, deleto minha conta no Facebook (o afastamento durou uma semana).

Alerta 4. Resolvo escrever um texto engraçadinho sobre tretas de fim de ano. Percebo, ao final, que o texto, postado em um espaço para celebrar a vida e as ironias dela, não só não teve graça como foi a pior coisa que já escrevi. A percepção se estende ao penúltimo texto, e ao antepenúltimo, e assim por diante até o início da minha alfabetização. Escrever, quem diria, passa a ser um parto.

Alerta 5. Penso com frequência em uma frase da Sylvia Plath no livro "A Redoma de Vidro". Algo como: se no fim tudo se acaba, qual o sentido de tudo? Por que, então, prorrogar as coisas?

Alerta 6. Os amigos e pessoas próximas percebem, e começam a me cobrar vergonha na cara. Que é preciso ter leveza. Que é preciso ver o lado bom das coisas. Escrever coisas bonitas. Que há muito tempo não conto "nada engraçado" nas redes sociais. E, sobretudo, que tenho um filho para criar, o que só me faz pensar que, como pai, falhei na principal missão que deveria assumir: sinto-me incapaz de transmitir qualquer legado de esperança.

Alerta 7. "Hoje é o último dia para confirmar presença na festa de fim de ano". Finjo que não escuto para fingir que me esqueci.

Alerta 8. Penso em escrever sobre como me tornei uma pessoa blasé, dessas que não toleram nada e não são toleradas por ninguém. Como faço às vezes, pergunto em um grupo de amigos no WhatsApp o que eles consideram uma pessoa blasé. Montamos uma lista. De um tempo pra cá, conto a eles, tenho achado tudo uma grande vulgaridade e todas as coisas, inclusive opiniões alheias, deprimentes. Uma amiga lê e dá um toque numa mensagem particular: "Você pode estar só deprimido. Vai ver isso aí".

Alerta 9. Dias de sol se tornam convites para não levantar da cama.

Alerta 10. Depois de 35 anos, quatro deles dedicados a um programa de filosofia e psicanálise na TV, marco pela primeira vez uma consulta com uma profissional. Falo durante duas horas sobre o que me vem à cabeça. A sucessão é um combinado aleatório de questões, do Donald Trump às relações familiares, afetivas e religiosas. Tudo está no seu lugar, digo, mas alguma coisa se perdeu. O diagnóstico é o esperado: o relato caracteriza um quadro depressivo. O diagnóstico de alguma forma me dá um ponto de partida: não, minha apatia não era (só) preguiça, cansaço, irritação, má vontade ou melindre. Sim, o mundo tem andando deprimente, e reagir a isso é o que nos resta de humanidade. Para isso existem caminhos, inclusive medicamentos, inclusive fitoterápicos. A cena seguinte é caminhada. É recuo para tomar fôlego. E voltar a caminhar. Saio com vontade de ouvir Caetano — e com vontade de resgatar outras vontades. I'm alive e muito vivo.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.