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Matheus Pichonelli

Por que nós, homens, transformamos o debate sobre assédio num Fla x Flu?

Matheus Pichonelli

15/01/2018 12h07

Catherine Deneuve no cartaz do filme A Bela da Tarde

Catherine Deneuve no cartaz do filme A Bela da Tarde

 

Nós, homens, gostamos de alimentar o senso comum, por meio de piadas, brincadeiras, discursos e até da indústria cultural, de que amizade verdadeira só existe entre homens*. Que mulheres são amigas até começarem a competir por algo em comum – o barraco entre personagens mulheres por um mesmo personagem homem na novela é quase um clássico. Do Gênesis pra cá, Eva é uma definição de vírus constantemente atualizada.

Tem quem ganha, obviamente, com essa suposta ausência de solidariedade pautada por uma supostamente natureza competitiva.

Na semana passada, muita gente estourou pipoca para acompanhar os desdobramentos da carta de Catherine Deneuve e outras artistas francesas criticando o movimento contra o assédio capitaneado por personalidades de Hollywood. "É isso!", "Finalmente alguém teve coragem de dizer", "Estava entalado na minha garganta" escreveram alguns amigos homens, referendados pela manifestação de uma artista do calibre de Deneuve, protagonista do filme A Bela da Tarde, de 1967, e um dos muitos símbolos da chamada revolução sexual.

O suposto racha, como se fosse um grande Fla x Flu, deu combustível para quem costuma desdenhar dos movimentos igualitários como o #MeToo, que coloca o assédio no centro do debate e agora é acusado de moralismo, inclinação persecutória e por aí vai.

Nessas horas é curioso ver como nós, homens, nos manifestamos em público para defender uma posição ancorada na vivência particular – e não estranha ver tanto chefe e professor, provavelmente assombrados com a reação a atitudes até ontem silenciadas, vibrando com a carta de Deneuve.

Muito se falou sobre o assunto, mas uma coisa ainda chama a atenção: a dificuldade de compreender o contexto das mobilizações.

Não se trata apenas de um recorte de classe: pessoas que tomam o ônibus todos os dias versus pessoas privilegiadas que não circulam em ambientes protegidos, onde os corpos não estão expostos a agressões diárias.

Deneuve e companhia são resultado de um outro tempo, em que a revolução sexual ajudou a solapar um tempo de repressões, controle e vigilância dos corpos e dos desejos. Sem levar isso em conta, fica difícil entender por que nomes como Leila Diniz fizeram história, por aqui, ao aparecer de biquíni em espaço público.

Até então era comum aos homens pedir a mão da garota, que deveria ser bela, recatada e do lar, em namoro ou casamento. Mas a quem? Ao pai dela.

Muitas vezes essa negociação envolvia apenas a vontade de um e o consentimento do outro, pouco importando a vontade de quem, no fim das contas, se metamorfoseava em moeda de troca de expansão dos interesses disfarçados de relações familiares. Curiosidade 1: vindo de outro homem, o "não", naquela época, não parecia produzir tanta margem para a ambiguidade como se diz hoje.

A revolução da qual Deneuve certamente fez parte ajudou a enterrar essa intermediação de desejos. A certa altura, ninguém precisava pedir ao pai para fazer o que quisesse. Não precisava sequer ser casada.

Passe a fita para frente e o contexto atual já não tem a repressão sexual como base, pelo contrário. O nó é que, como nos tempos dos nossos avós e dos avós de Deneuve, o desejo feminino seguiu sujeito à vontade do homem, para quem basta desejar para ter acesso – agora sem a intermediação dos pais. Nasce aqui, imagino, a violência do assédio, na qual uma só vontade permanece determinante.

Até pouco tempo, homem público era sinônimo de distinção e mulher pública, de palavrão; era alguém que não merecia respeito. (Curiosidade 2: o respeito, como podemos presumir, era destinado a outros homens, como os pais ou maridos, e toda violência era justificado contra mulheres desacompanhadas, em torno do qual até mesmo o universo jurídico se moldou por meio de atenuantes: "provocou", "estava na rua a essa hora por que?", "se estava na balada é porque queria", "o vestuário era inadequado", etc).

A violência dentro de quatro paredes atravessa gerações, mas a discussão sobre assédio em ambientes públicos e privados, que expõem as relações de poder, acontece num contexto pós-revolução sexual, em que as mulheres estão dizendo que liberdade de ir e vir é poder se relacionar com quem elas quiserem, e não de se submeter a vontades alheias.

Quem vê intransigência nisso não entendeu sequer a revolução sexual que agora se apega para acusar o moralismo alheio.

A discussão atual, imagino, é uma consequência, e não a anulação, da revolução sexual. A diferença é que a pauta é o direito ao "não", e não mais (ou apenas) ao "sim".

Enquanto isso não for entendido, vamos permanecer presos a um passado que, como agora, só leva em conta um lado da história. Se você soltou fogos e comemorou o suposto racha e enfraquecimento no debate, cuidado: pode estar dando bandeira demais de que lado da História você está.

 

*Só resolvi entrar no assunto após uma longa conversa, pela manhã, com minha companheira, a Camila, sobre a entrevista na Folha de S. Paulo da escritora Catherine Millet, para quem a campanha #MeToo é "ofensiva aos homens". A íntegra pode ser lida aqui.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.