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Matheus Pichonelli

Mortes no Carnaval de SP são sintomas das cidades criadas para moer gente

Matheus Pichonelli

07/02/2018 04h00

O estudante de engenharia Lucas Antônio Lacerda da Silva, 22, eletrocutado ao encostar em um poste na região central de São Paulo – Arquivo Pessoal

 

Lucas Lacerda da Silva, de 22 anos, "era só sorriso", segundo contam os amigos. Gostava de ajudar quem precisasse, fazia trabalho voluntário, abrigava estrangeiros em casa e, sem tempo ruim para nada, no sábado saiu para celebrar o Carnaval no centro de São Paulo como outros milhares de foliões Brasil afora. Foi eletrocutado ao encostar em um poste na equina da Rua da Consolação com a Matias Aires.

No poste estavam instaladas, a princípio de forma irregular, duas câmeras de segurança de uma empresa parceira da prefeitura no monitoramento da passagem dos blocos. Ao menos 24 equipamentos do tipo encontram-se na mesma situação, o que expõe ainda mais as falhas do Carnaval na cidade, como a demora no atendimento e a falta de fiscalização.

A morte do estudante é quase uma alegoria sinistra da queda de braço entre a alegria gratuita da festa popular e uma cidade organizada para vigiar, punir e sufocar.

Da mesma forma, os dois foliões assassinados, também durante o pré-Carnaval, por um funcionário de um posto de gasolina parecem incorporar, também de maneira macabra, as vítimas de um barril de combustível prestes a explodir (já explodiu?) a qualquer momento.

O barril é o ódio, a fagulha é a raiva, e as armas supostamente guardadas em nossa defesa são justamente por onde escoa a explosão – geralmente sobre alguém desarmado.

O crime? Pedir para usar o banheiro, ou usar o banheiro de forma inapropriada, que seja.

Em nossas cidades, nos acostumamos a ver os espaços apropriados por empreendimentos, fechados, vigiados e concretados, e o avanço sobre essa fronteira tomada de proprietários é a aplicação prática da pena de morte para as desatenções mais corriqueiras.

Se o Carnaval é um intervalo em uma rotina com horas marcadas e espaços ocupados por automóveis e escapamentos, no restante do ano é a paranoia e o delírio da vigilância e do controle dos corpos os fatores determinantes do nosso autoexílio para dentro das casas, repartições, escritórios, vias subterrâneas.

O Carnaval é como se chama a ofegante epidemia de uma alegria fugaz, como na música de Chico Buarque. É quando nos reunimos para festejar sem ter exatamente um motivo, como se uma simples interrupção dos dias amargos e das horas marcadas valesse uma apoteose.

Essa apoteose pode estar nos tambores, no carro de som ou até no beijo de desconhecidos que amanhã podem permanecer anônimos ou parte da nossa vida – ou os dois.

Até que a cidade, com a flecha da sua violência e das vivências empobrecidas, resolve rasgar a fantasia antes mesmo de começar a festa.

Sintomático que a barbárie se revele de forma tão feroz em nossos dias mais festivos. No poste de luz ou no posto de gasolina onde os carros se alimentam, os foliões morreram a pé pensando fazer parte de uma folia. É como se a cidade gritasse quem tem, afinal, o direito a circular nela.

Que os quatro dias restantes de Carnaval sejam, mais que uma grande festa, um revide da teimosia e da alegria.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.