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Matheus Pichonelli

Inglaterra cria Ministério da Solidão, e isso diz muito sobre nosso futuro

Matheus Pichonelli

08/02/2018 04h00

 

O Reino Unido anunciou, no último dia 17, a criação do Ministério da Solidão. A pasta, segundo a primeira-ministra britânica, Theresa May, deverá tratar como política pública uma "triste realidade" que atinge 9 milhões de pessoas naquele país: o abandono enfrentado pelos mais velhos, que geralmente não têm ninguém para conversar ou compartilhar seus pensamentos e experiências.

Trata-se de uma "epidemia oculta", de acordo com a Cruz Vermelha Britânica. É também consequência da vida contemporânea.

Vai ver é por isso que saímos tão pensativos de um filme aparentemente voltado ao público infantil como Viva – a Vida é uma festa, dirigido por Lee Unkrich e indicado ao Oscar de Melhor Animação.

É possível que as crianças se identifiquem com as estripulias do pequeno Miguel, jovem protagonista mexicano que contesta as autoridades familiares para seguir o sonho de virar músico. Para isso, ele tenta restabelecer, no Dia dos Mortos, os laços com o tataravô que abandonou a companheira e a filha para correr o mundo tocando as suas canções mundo afora, o que explica a rejeição daquela família a qualquer inclinação artística. Em vez disso, todos devem permanecer naquela casa com os pés, literalmente, no chão, trabalhando juntos na fábrica de sapatos com estrutura familiar criada pela outrora abandonada tataravó.

O título original do filme, descartado por aqui para evitar trocadilhos, é "Coco", nome da filha do tataravô fujão e bisavó do protagonista. Debilitada pela idade, ela é a personagem mais importante da história, embora o público demore a perceber isso enquanto acompanha a travessia do bisneto até o mundo dos mortos.

Não é preciso experimentar nada alucinógeno antes nem depois do filme para imaginar que aquele mundo dos mortos é um mundo alegórico. As pessoas que vivem ali só existem enquanto existe a lembrança deles no mundo de cá. Quando são esquecidos, eles desaparecem, mesmo estando mortos. É papel dos mais jovens cuidar, regar e vigiar a memória dos que nos contam as trajetórias de nossos antepassados.

Naquele mundo imaginário, a busca do pequeno é uma corrida contra o tempo: precisa resgatar a história de seu tataravô enquanto sua bisavó à beira da morte ainda consegue se lembrar do pai. O mundo prestes a desaparecer é o mundo que só existe na memória dela. E para que ele exista é preciso ouvi-la toda vez que, em sua aparente confusão mental, aponta para uma foto desbotada e tenta dizer alguma coisa.

Sem saber, o jovem se torna um ponto de mediação entre esses dois mundos. O curioso, no filme é que nenhum desses universos está livre de incorreções e injustiças, e até mesmo entre os mortos existe uma hierarquia feroz, contada pelos vencedores e trapaceiros – a eles, a memória; aos derrotados, o esquecimento.

Na cultura mexicana, o Dia dos Mortos não é uma data fúnebre, mas festiva. É o momento de reforçar o compromisso contra o esquecimento, o que só é possível com o reforço dos laços familiares e das nossas origens.

Um dos dramas da velhice é exatamente esse: parte do mundo que se conhece está morrendo, e até mesmo a tradição de lembrar e dedicar o pensamento a este mundo que acabou mas teima em não desaparecer estamos perdendo.

Envelhecer é uma forma de viver à margem de uma sociedade que privilegia a produtividade dos indivíduos – com ou sem história, memória e outros objetos descartáveis da subjetividade. Não por acaso, uma pesquisa recente do Datafolha aponta que a grande maioria das pessoas tem medo do fim da vida, mas não da morte. Parece contraditório, mas não é.

Não se trata exatamente de achar um culpado nessa época de imperativos profissionais, necessidades e facilidades de deslocamento e ausência de contatos e cuidados de uns com os outros, um contraste com uma época em que a gente nascia e crescia na casa ao lado dos pais, avós, tios e bisavós, dividindo, mais do que o espaço, a mesma força de trabalho na mesma lavoura ou ofício nos dias da semana e a mesa da macarronada aos domingos.

A fragmentação, o afrouxamento dos laços coletivos e de identidade e a ideia de presente contínuo, em que não há sequer tempo para planejar o futuro ou compreender o passado, são marcas do mundo atual. Como consequência, traçamos sozinhos nossos planos de voo individuais, até que nossas forças e esforços de memória começam a falhar e passamos a depender de alguém para não desaparecer.

Como resolver esse impasse?

O exemplo da Inglaterra mostra que a questão já pauta as políticas públicas e promete desafiar as gerações futuras. Em auxílio das autoridades britânicas – e das nossas – o filme de Lee Unkrich serve como refresco para imaginar um mundo em que ninguém precisa ser apagado quando a vida pedir passagem.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.