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Matheus Pichonelli

O troglodita pode ser gente boa? Diga-me o que postas e eu te direi quem és

Matheus Pichonelli

21/02/2018 11h32

 

Imagem: Getty Images

Todo mundo conhece aquele tipo cidadão pacato que se transforma num troglodita quando atravessa o portal imaginário do Facebook, Twitter, WhatsApp e afins.

"Mas pessoalmente é boa gente", alertam os conhecidos na tentativa de minimizar os embaraços causados por quem usa as redes para proferir verdades sem esconder a própria tosquice embrulhada em preconceito, miopia intelectual ou limitação moral.

Mais ou menos como em época de Copa do Mundo, quando todo mundo se transforma em treinador da seleção e tem a solução mágica para o despertar da força em cada jogador, há momentos da vida pública que muita gente se reveste de especialista em assuntos sobre os quais tem muita convicção e pouca informação. Nessas horas é melhor não contrariar – é como tentar convencer um torcedor a mudar de time com base em números que atestam a superioridade técnica da equipe rival. Não vai dar certo, mas é bom ficar alerta.

Não é que o cidadão não possa nem deva opinar sobre questões da vida pública. Mas a forma como isso acontece muitas vezes diz mais sobre quem se posiciona do que sobre a questão. Direito de gostar deste ou daquele quadro político todo mundo tem; o problema é quando se usa esse direito para expor preconceitos em relação ao gênero, a sexualidade, a idade, o lugar de origem ou até alguma eventual limitação física do suposto alvo.

Tudo fica ainda mais exposto quando os especialistas de ocasião resolvem dizer o que pensam sobre uma certa intervenção federal sob o comando do Exército em uma área marcada pela violência onde ele jamais pisou (uma situação fictícia, claro).

Como num passe de mágica, esses comentaristas, que nos círculos pessoais não economizam bons dias e até perguntam gentilmente se melhoramos da tosse, se transformam, com um teclado ou tela sensível ao alcance, em exterminadores de comunidades, crianças, mulheres e tudo o que não se enquadre em sua régua de cidadão de bem – quase sempre tudo o que não é ou não se parece com ele ou algum familiar.

Essa transformação tem nome. Uns chamam de indignação seletiva, mas o correto, como lembra o imprescindível Elio Gaspari, é demofobia, como é chamado o temor obsessivo de multidões.

Em tempo: todos queremos um país melhor, mais justo, menos violento. Mas a artilharia verbal calcada no ódio – mata, esfola, limpa, incinera – de quem supostamente quer ver o país a limpo parece não só contraditória como inútil. Essa artilharia, afinal, quase nunca vale para o parente ou vizinho que sonega, suborna ou bate na companheira e nos filhos. Aí é dar margem demais ao politicamente correto.

A dúvida é quem desses personagens encarna o lado real do ser humano: o que esboça gentileza em público ou o que desfere coices nas redes?

Costumamos dizer que as redes encorajaram as pessoas a dizer o que pensavam. O movimento parece correto, mas a palavra coragem está deslocada, pois é justamente tudo o que nos falta quando escrevemos sem o ônus da réplica ou da tréplica e ainda temos a possibilidade de bloquear divergências. Aí qualquer rato de navio vira super-herói.

Não que as redes tenham inaugurado o conflito entre ser e parecer. Muitos são gentis, pacatos e generosos até a segunda página, mas é nas brechas da convivência que encontramos as unhas do troglodita das redes: de perto podemos visualizar melhor e desconfiar pela forma com que trata seus pais, seus parceiros ou parceiras, seus subordinados e até o garçom.

O que a vida em rede fez foi atualizar as definições consagradas para medir nosso caráter: "quer conhecer a pessoa de verdade, dê poder a ela" e "diga-me com quem andas e te direi quem és".

Hoje basta dar poder de dizer qualquer coisa em público para concluir: diga-me o que postas e eu te direi quem és.

O personagem real é uma contradição assustadora. Ninguém é "boa gente" no privado defendendo extermínio em público.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.