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Matheus Pichonelli

Já parou para pensar que seu preconceito impede você de viver muita coisa?

Matheus Pichonelli

27/02/2018 17h09

Parece ficção, mas aconteceu na minha última viagem. Uma semana antes do Carnaval, aluguei um apartamento a alguns passos de uma conhecida praia de pescadores.

O apartamento ficava em um condomínio com outras pequenas torres. A maioria só visitava o local aos finais de semana, mas havia também moradores.

Um deles, que vivia ali sozinho, se aproximou, puxou conversa e no minuto seguinte tentou me convencer a comprar seu apartamento (eu compraria, se tivesse dinheiro). Ele contou que nasceu em São Paulo, estava lá havia seis anos mas estava cansado e queria se mudar.

Simpático, ele desejou que aproveitássemos a estadia e se colocou à disposição para qualquer coisa. Usei a carta no nosso primeiro reencontro: ele voltava do supermercado, com algumas salsichas para cachorro-quente numa sacola, e eu perguntei onde tinha um bom lugar para comer por ali.

"Xiiii, por aqui é difícil", ele explicou.

Disse que, por uma questão de higiene, só costumava comer em casa e evitava contato com os restaurantes das redondezas. A explicação: não confiava em caiçara.

Caiçara, nos lembra o Wikipedia, é como chamamos os habitantes tradicionais do litoral Sudeste e Sul do Brasil, geralmente descendentes de índios, negros e colonos portugueses, muitos dos quais vivem da pesca.

Por medo, sabe-se-lá-do-quê, o nosso vizinho por dois dias evitava contato com a população nascida ali. E, em nome desse medo, percebemos, naqueles poucos dias, que ele levava uma rotina empobrecida, do trabalho para casa, da casa para o supermercado, do supermercado para a cozinha esquentar salsicha. Nada muito diferente da vida de muita gente nas grades cidades, só que com um paraíso natural a poucos passos.

Aquela ausência de confiança tem nome: preconceito. E preconceito é qualquer opinião ou sentimento descabido sem exame crítico. (Está no Wikipedia também, mas você pode ter uma definição melhor se assistir O Insulto, drama libanês indicado a Oscar de melhor filme).

Em tempo: todos temos preconceito ou esbarramos em atitudes preconceituosas ao longo da vida; o problema é quando não somos capazes de identifica-los nem desconstruí-los.

Em qualquer condição, o alvo do preconceito é alvo também de uma carga de exclusão e sofrimento difícil de calcular.

Não dá, e nem é essa a ideia, para comparar as restrições impostas entre quem sofre e quem se alimenta desse sentimento hostil sobre quem quer que seja.

Mas é possível dimensionar o que alguém tomado de preconceito deixa de viver por causa dele. Isso porque, enquanto o vizinho requentava sua salsicha protegido entre muros, descobríamos, a poucos metros dali, um exemplo do que deveria ser nossas tardes: crianças brincando na areia, adultos correndo ou jogando bola, cores, sol, cheiros e sensações de infinito desenhadas até onde a vista sobre o mar alcançava.

Foi lá, muito perto daquele condomínio, que descobrimos um simples e simpático restaurante "caiçara" que servia peixes. Um dos melhores que já comi.

Até o fim da viagem eu não voltei a encontrar o morador encarcerado. Mas o sabor daquele peixe, em contraste com a imagem solitária do camarada e suas sacolas de supermercado, me ajudou a entender tudo o que perdemos na vida quando somos alimentados e paralisados pelo próprio rancor.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.