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Matheus Pichonelli

Oscar 2018 foi um apelo à tolerância. Até para quem curtiu A Forma da Água

Matheus Pichonelli

05/03/2018 11h58

Cena do filme A Forma da Água

Cena do filme A Forma da Água

 

Gostemos ou não, a cerimônia da entrega do Oscar é mais ou menos como uma visita a uma galeria de arte: uma oportunidade de acompanhar tendências e dialogar com valores que se quer comunicar. O desafio é acompanhar como o cinema tem absorvido e levado a milhões de espectadores as demandas por mudanças que pipocam mundo afora: relações igualitárias, combate ao assédio, representatividade, acolhimento às diversidades, etc.

Em edições anteriores a ausência desses sinais foi justamente tema de protestos recentes. Evoluímos?

Em uma época em que a política parece refém de discursos populistas e simplificadores e colocam no centro das decisões, ao menos nos EUA, um presidente ególatra e avesso ao contraditório, o maior evento da cultura americana acaba de premiar uma produção que usa a fantasia para falar sobre tolerância.

A Forma da Água não era meu filme favorito (e confessar isso em voz alta me fez perder alguns amigos nessa vida). Na minha modestíssima opinião, o filme desperdiçava uma boa premissa com uma história previsível, personagens estereotipados e uma linha muito clara, mas clara a ponto de subestimar o espectador, entre bem e mal.

Era o oposto de Três Anúncios para um Crime, no qual essas fronteiras se borram à medida que nos aproximamos dos personagens, como uma chance de redimir seus pecados e discursos. Essa proposta chega a falhar quando passamos a ver com simpatia um chefe de polícia, bom pai de família à beira da morte, que nada fazia para conter os subordinados que abusavam da força e da violência para estabelecer uma ordem duvidosa em uma cidadezinha do interior americano.

O filme servia como um alerta: numa sociedade tomada pela ansiedade e pautada pelas informações fragmentadas, mais ou menos como os três "tuítes" dos anúncios de outdoor pagos pela mãe que buscava vingar a morte da filha, a descrença nas instituições e a desconfiança entre vizinhos levarão cada um a buscar a justiça com as próprias mãos, e isso é o prenúncio da nossa falência como civilização.

Essa mensagem, bancada com todos os riscos pelo diretor Martin McDonagh, acabou premiada, de certa forma, com as estatuetas de melhor atriz para Frances McDormand e melhor ator coadjuvante, para Sam Rockwell. O discurso de McDormand, aliás, era um dos mais esperados. Aos 60 anos, seu recado sobre inclusão foi mais certeiro do que qualquer chute de sua personagem.

A festa serviu como desagravo para quem, fora daquela cerimônia, é tratado mais ou menos como a criatura aquática que as autoridades americanas espancavam e tentavam confinar em um laboratório da Guerra Fria. O plano de fuga daquela criatura conta com a união de forças entre uma faxineira muda e dois amigos: uma mulher negra e um vizinho gay, impedido inclusive de dividir o balcão de uma doceria de "ambiente familiar".

Guilherme del Toro, que a depender de Donald Trump seria apartado daquela cerimônia com o seu sonhado muro na fronteira, se tornou o terceiro mexicano a vencer o Oscar de direção da maior premiação americana.

Do México vinha também a temática da animação vitoriosa da noite: Viva – a Vida é uma Festa, uma história sobre envelhecimento e memória, consagração e anonimato e, sobretudo, mundos divididos (a travessia desses mundos passa também por uma espécie de controle rigoroso de fronteiras). De quebra o filme levou ainda o Oscar de Melhor Canção Original, festejada ali pelo também mexicano Gael Garcia Bernal. A música-tema ganhou, assim, um caráter quase político: Lembra de mim.

A noite consagraria ainda o chileno Uma Mulher Fantástica, que tem uma mulher trans como protagonista, e faturou a estatueta de melhor produção em língua estrangeira, desbancando o libanês O Insulto, um dos maiores alertas sobre as consequências da intolerância em um ambiente político tão acirrado como o atual.

Quem àquela altura já havia se afogado de rancor em meio a tanta concessão ao "politicamente correto" provavelmente não conseguiu ver o longa Me Chame pelo Seu Nome, uma história de amadurecimento e amor entre dois homens, levar o Oscar de melhor roteiro adaptado. O filme, aliás, tem um diálogos entre pai e filho sobre relacionamento que todos devíamos imprimir e enquadrar até aprender.

Para fechar, o Oscar de Roteiro Original ficou com Corra!, um filme de terror inspirado nos insultos racistas travestidos de camaradagem branca ouvidos pelo diretor, Jordan Peele.

A lamentar apenas a ausência de prêmios para Greta Gerwig e seu Lady Bird – A Hora de Voar, um epílogo da geração pré-Facebook.

Como sempre, a repercussão da premiação na segunda tela fazia valer a manhã desgraçada de sono na segunda-feira. Para alguns, o grande vencedor da noite era até um filme bacana, mas não passava de um remake de outros clássicos, como…E.T – o Extraterrestre, Splash – Uma Sereia em Minha Vida e Free Willy.  Maldade. Houve também quem resolveu problematizar a problematização de um filme cujo protagonista era (alerta de spoiler) uma criatura que se alimenta de nossos pets.

Mas o vencedor da estatueta de melhor post foi um amigo que a certa altura da noite avisou: se a trilha sonora fosse Borbulha de Amor, o Brasil estaria comemorando, uma hora dessas, o seu primeiro Oscar. Quem nos dera ser um peixe…

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.