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Matheus Pichonelli

A violência não é o rugido dos vencedores. É o suspiro dos derrotados

Matheus Pichonelli

19/03/2018 10h10

Vigília em homenagem à vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco e ao motorista Anderson Gomes, na quinta-feira (15), em Curitiba (Foto: Gibran Mendes)

 

 

Minha mãe costumava me dar a mão para morder toda vez que eu tomava injeção.

O cheiro das farmácias e o brilho da ponta da agulha eram figuras recorrentes para quem, logo cedo, precisava tratar da bronquite alérgica e começava a perder a audição em decorrência dos medicamentos.

Nunca entendi por que ela fazia aquilo. Era como se pudesse transferir para o próprio corpo o medo de alguma perda maior. As marcas dos dentes e o sangue pisado ficavam na mão dela sem que a minha dor, a dor física, fosse minimizada.

Um pouco mais velho, já salvo das crises alérgicas e com a audição recuperada, comecei a rejeitar aquela forma de solidariedade. Assim como eles, nós, os filhos, não queremos que os pais sintam dor. Nem queremos carregar a culpa por sentirem dor.

Sabia de nada, inocente.

Anos mais tarde, meu filho nasceu. Um pouco antes da hora, no sétimo mês de gestação e com apenas um quilo. Num exame de rotina, a médica percebeu que ele acabava de entrar no chamado processo de sofrimento fetal, quando começa a faltar oxigênio e nutrientes no fluxo do cordão entre mãe e filho. Tivemos que esperar 40 dias para segurá-lo nos braços, enquanto ele ganhava força e peso em uma incubadora na UTI neonatal.

O hospital, o único com vaga disponível para mãe e filho, ficava a quase 15 quilômetros de casa, e era praticamente impossível a uma mãe operada ir e voltar do hospital três vezes ao dia.

Para facilitar as coisas, alugamos um quarto na única pensão para estudantes e trabalhadores temporários perto daquele hospital. Lá ficamos 40 dias também internados, a mãe, o pai, a vó e a cachorra. Era o tempo necessário para criar também força e musculatura para aquela missão.

Algo naquele mundo ou no outro nos alertava: era preciso entender o que ele passava para completar a travessia. Num dia éramos filhos que mordíamos a mão da mãe; no outro, éramos pais racionando o ar para aprender a respirar.

Naquele quarto onde só cabia uma cama e uma mesa, eu adaptei um escritório. De lá acompanhei e "cobri" as manifestações de junho de 2013, que estouraram exatamente no quarteirão onde morava e trabalhava havia quase uma década, em São Paulo.

Lembrando hoje, e vendo um menino de quase cinco anos tentando espantar meu desânimo para brincar, eu me pergunto como não enlouquecemos naqueles 40 dias. Não enlouquecemos porque naquele instante de fragilidade compreendemos como a vida, em seu limite, era implacável. E vingava, sob os cuidados de uma equipe médica cuidadosa e a rede de solidariedade dos outros pais que dividiam a fila para visitas todos os dias, três vezes ao dia, durante mais de um mês. Cada notícia de alta era uma grande comemoração. Lá, de alguma forma, estávamos protegidos.

Medo, se havia, era uma palavra ainda em gestação.

O assassinato, na semana passada, da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Pedro Gomes me fez pensar o quanto é frágil a bolha de proteção à vida que tentamos carregar desde então. Que nossa ideia de civilização é facilmente atravessada pelas balas da barbárie. E que, mesmo mortos, é preciso morrer ainda muitas vezes, em cada comentário minimizando a vida e a história das vítimas, até que essa bolha imaginária seja novamente reconstituída, se é que um dia será.

No dia seguinte, acordamos todos transformados em um imenso inseto, como na metamorfose de Kafka. Quando o olhar do outro tira de nós o que nos resta de humanidade, a vida pode ser facilmente pisada, como fazemos com baratas. É a banalização da banalização. Do mal, da vida e da inteligência de quem repete slogans sem ouvir a própria voz.

A humanidade precisa de uma grande rehab, e para reunir força é preciso voltar alguns passos e lembrar o que nos trouxe até aqui. Uma vez pais, já não temos mãos para morder e compartilhar o medo, agora sim fundamentado. A vontade é fugir para algum lugar desabitado, deitar em posição fetal, reconstituir nosso cordão umbilical e adormecer até que uma nova placenta se forme ao nosso redor.

Não é que estamos assustados. Estamos apavorados.

Mas ser pai, ou mãe, é deixar de ser filho. É, em vez disso, emprestar a mão para as mordidas. E lembrar, todo santo dia, que é preciso não ser barata, é preciso ser gente, é preciso ensinar a ser gente. É preciso sobretudo construir caminhos para que a barbárie que tentam nos impor seja o suspiro dos derrotados, e não o rugido dos vitoriosos.

Lembro, então, da canção favorita da minha mãe, religiosa que na vida tenta se guiar por quem, diferentemente dos justiceiros de plantão, afirmava não ter vindo ao mundo para condenar, mas para acolher as diversidades de um povo em busca de voz, vez e lugar: "se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão. Se fecharem os poucos caminhos, mil trilhas nascerão".

As manifestações nos dias seguintes da barbárie ensinam que a vida resiste. Brota, e se multiplica, onde menos se espera.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.