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Matheus Pichonelli

Em um mundo que cobra espontaneidade, assumir a timidez pode ser libertador

Matheus Pichonelli

24/04/2018 04h00

Foto: Getty Images

E então eu descobri que era (sou) mais introvertido do que gostaria.

Estava numa roda de pessoas, com quem tinha pouca ou nenhuma intimidade, procurando como um oásis alguém que conhecesse, ao menos de vista, e pudesse conversar, mostrar desenvoltura, afiar a língua, enfim.

Não encontrei e decidi que, ao menos desta vez, não faria nenhuma brincadeira quebra-gelo com desconhecidos ou recém-conhecidos, o que fatalmente me faria corar de vergonha minutos, semanas ou alguns anos depois.

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Fiquei na minha, num canto, com risco de ser chamado de cão antissocial e naquele intervalo me lembrei das inúmeras vezes em que, com receio de parecer inseguro ou travado, resolvi beber o que tinha e o que não tinha nas prateleiras para parecer descolado ou detentor de algum domínio da situação.

Isso explicava, provavelmente, as minhas bebedeiras mais homéricas: a dificuldade de falar com adultos, ao fim da adolescência, ou como um adulto, na vida adulta.

Não tem problema assumir a timidez, descobri, um pouco tarde, com a ajuda da terapia, e depois de muito sobrecarregar as sinapses para tirarem da cachola alguma piada ou tirada supostamente sagaz para lidar com aqueles segundos de silêncio entre desconhecidos ou conhecidos que já não se reconhecem. Pra quê? Tudo pra chegar em casa remoendo, já devidamente sóbrio, "por que foi que você falou aquilo?".

Falar em público é um inferno. Participar de debates, idem. E perguntas nas coletivas de imprensa? Em todas as tentativas de agir naturalmente eu e minhas piadas quebra-gelo falhamos miseravelmente.

Mas você não era todo falante na sala de aula? Não adorava ser o engraçadinho da turma na frente da professora? Na viagem de formatura, me lembram as enciclopédias da memória, até apareceu com cueca samba-canção no pátio da escola, imitou o Renato Russo no karaokê, vestiu uma peruca verde na festa para comemorar o título do meu time.

Vendo hoje, tudo parece uma grande farsa para aliviar o desconforto de querer enfiar a cabeça em um buraco e corar em paz, longe dos olhares persecutórios daquela tirania chamada juventude.

Anos depois, o jornalismo e a vida na cidade grande me ajudaram a domesticar o acanhamento pela perspectiva da sobrevivência. Eu odiava (e gaguejava ao) falar por telefone, mas me acostumei a fazer para conseguir entrevistas; odiava (e gaguejava ao) falar com estranhos, mas me acostumei a fazer; odiava (e gaguejava ao) incomodar as pessoas, sobretudo autoridades, mas me acostumei a fazer. Era pago para isso.

Virei um ser social, literalmente, por ofício, mas já houve caso em que saí de um auditório, após mediar um debate, com uma febre repentina caindo na cabeça como bigorna. Podia ter simplesmente rejeitado, educadamente, o convite? Podia. Só não declinei por vergonha de dizer não.

Entre uma frustração e outra eu escrevia (inclusive sobre a frustração), e escrever o que nem sempre conseguia falar com a boca foi meu exercício terapêutico de comunicação para a vida. E, se antes admirava a desenvoltura de quem falava ou demonstrava talentos extraordinários em público, com a idade passei a admirar a capacidade de quem consegue cultivar o próprio silêncio e abrir a boca apenas para dizer o necessário.

Há mais ou menos quatro anos, me mandei de volta para o interior. Vim morar à beira de um córrego cercado por mato e, nos dias de home office, muitas vezes vejo (e converso com) mais animais do que gente.

O problema é quando, nas (agora raras) aparições em lugares públicos, cosmopolitas e descolados, eu nem sempre consigo deixar em casa o meu lado bicho do mato. É mais ou menos como voltar aos primórdios da adolescência.

Nessas horas um sinal de alerta parece se acender, como quem diz: não precisa se autodepreciar, dizer que quando você chegou lá tudo era mato e ainda é, não precisa lembrar de piadas de dez, quinze anos atrás, não precisa fingir felicidade ao ver alguém que não gosta (não precisa sequer gostar de todo mundo), não precisa de abraços efusivos nem piadas maldosas para parecer espontâneo o tempo todo quando você pode simplesmente ficar… quieto.

Talvez, no fundo, todos nós sejamos um pouco assim, e há mais esforços e frustração em parecer o contrário do que transtornos de ser somente o esquisitão do rolê. A não ser, claro, que seja realmente algo paralisante e incapacitante, o que não é o caso, assumir a timidez pode ser libertador.

Uma pena que demorei tanto a perceber. Isso me salvaria de uma infinidade de episódios em que agi como idiota para ninguém perceber que, no fundo, tinha era medo de parecer um.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.