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Matheus Pichonelli

Sorria! As estratégias de 'motivação' no trabalho foram atualizadas

Matheus Pichonelli

03/05/2018 04h00

Reprodução do quadro

Reprodução do quadro "Operários", de Tarsila do Amaral

 

Pouco antes do Dia do Trabalhador, celebrado na última terça-feira, 1º de Maio, o IBGE revelou que a taxa de desemprego no Brasil já atinge 13,7 milhões de pessoas.

Além da crise, e da incompetência das autoridades para lidar com ela, atravessamos um período de turbulência no qual os modelos de produção, como conhecemos, estão em processo de transformação devido à intensificação do uso das tecnologias da informação. Profissionais como taxistas, gráficos e até vendedores de lojas físicas sofrem para se adaptar a um mundo de demandas e comunicações virtuais que mudaram a forma como compramos e adquirimos serviços e exigem menos custos e menos mão de obra. Algumas profissões e funções em grandes empresas estão fadadas à extinção.

Isso significa que, se alguém passou até aqui imune à onda de cortes, pode comemorar, ajoelhar e agradecer, certo?

Mais ou menos. A multidão de desempregados afeta diretamente a vida de quem ainda se segura em seu posto – seja porque conhece ou se relaciona com quem foi demitido, seja porque há uma sombra em cada baia questionando quando seremos os próximos.

Por curiosidade, tenho observado como algumas empresas têm se posicionado em relação à crise. O desafio é passar uma imagem positiva aos clientes, às comunidades e, principalmente, aos contratados que passaram a acumular funções em equipes reduzidas.

A preocupação com o bem-estar e a saúde mental dos comandados é louvável, mas algo soa estranho quando é preciso substituir o papo reto por eufemismos.

No mundo atual, dizem, o trabalhador não quer apenas um emprego, mas uma missão; o chefe foi substituído por líderes; empregados são colaboradores; demissão é descontinuidade; acúmulo de funções é "versatilidade"; jornadas de trabalho com fronteiras borradas é "flexibilidade"; e hierarquia é uma ideia antiga substituída por um até agora impreciso sistema horizontal de relacionamento que funciona até o momento em que barata começa a voar. Nessas horas entra em operação a velha caça às bruxas, a limpeza de digitais nas decisões equivocadas, os gritos, os constrangimentos e o velho e bom "eu é que mando".

Ainda assim é preciso fazer com que os sobreviventes se mantenham motivados, e as estratégias para isso são variadas.

Uma fabricante de bebidas, por exemplo, decidiu combater a apatia dos funcionários que já não liam sequer as circulares internas criando um descolado aplicativo no qual o peão poderia interagir com os chefes e os colegas nas horas de almoço e no fim de semana – um jeito de se manter conectado o tempo todo e ainda produzir informações sobre (e contra) ele mesmo.

Uma rede de fast food deu asas à imaginação e anunciou que, em determinadas unidades, apenas mulheres trabalhariam no…Dia da Mulher. A iniciativa, anunciada por um gestor homem, a exemplo de outros gestores homens em um país onde mulheres são chamadas de vitimistas por reivindicarem igualdade de tratamento e remuneração, visava mostrar como a empresa estava sensibilizada com a ideia de diversidade.

"Todas foram trabalhar felizes da vida", jurou o representante, porta-voz também da felicidade das funcionárias.

Lembro, então, de uma cena do filme "A Era da Inocência", de Denys Arcand, em que funcionários a ponto de explodir em uma repartição onde imperam o assédio e a desmotivação precisavam interromper as atividades para sorrir, constrangidos, em uma sessão de risoterapia paga pelos chefes. Mas do que elas riam?

Me pergunto se essa ideia de felicidade é realmente necessária quando o profissional é valorizado por estratégias, digamos, menos criativas:  pagamento em dia, direito ao descanso, relações baseadas na confiança e no respeito, inclusive do horário de trabalho.

Não é preciso inventar a roda, pagar fortunas para bandas de rock na festa da firma ou criar dias especiais para convencer ninguém a ser especial – o índice de satisfação está relacionado justamente à distância entre expectativa e realidade, e ela é quase sempre mais dura do que nos prometem os manuais para vencer na vida.

O trabalho pode, sim, ser um instrumento de satisfação e realização pessoal. Mas ninguém será menos honesto se entender que, em geral, será pago para resolver pepinos, lidar com estresses e cumprir funções burocráticas e nem sempre prazerosas. Ter isso em mente pode ser um antídoto para ansiedades e transtornos provenientes da culpa por não ser feliz o tempo todo na função de produzir sonhos, e não serviços ou mercadorias.

Com mais respeito, e menos dias especiais para convencer alguém a trabalhar mais por menos, certamente o trabalhador levaria menos neurose para casa – este sim, um espaço adequado para encontrar instantes similares ao que imaginamos ser a felicidade.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.