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Matheus Pichonelli

Nem sempre as mães percebem que já não temos 12 anos. Que bom!

Matheus Pichonelli

10/05/2018 04h01

Imagem: iStock

 

Escrever sobre o pai é mole. Quero ver falar sobre a mãe, diz no fundo da consciência este texto que mal nasceu.

Falar sobre o pai não tem segredo. Ele me ensinou a gostar dos Beatles. Dos filmes de ação. A jogar futebol. A torcer pelo meu time.

Em casa, como na maioria das casas da nossa cidade nos anos 80, o pai não tinha só o acesso ao mundo, para onde ia pela manhã e de onde retornava ao fim da tarde. Tinha acesso à sala de música, de TV, aos vinhos, à garagem. Era, na aparência, a nossa primeira autoridade constituída.

Mas escrever sobre a mãe é adentrar em um território sagrado, e nesse território não tem só a banda favorita, o time de coração, as ferramentas.

Tem algo maior.

Escrever sobre a mãe é escrever sobre o princípio da transgressão, a começar pela origem da vida, uma teimosia em um mundo que celebra e noticia tantas mortes.

Em casa, uma canção aparentemente ingênua da mãe na cozinha era o alerta de que o pai chegara e os filhos precisavam correr pelos quartos para desligar os aparelhos eletrônicos, como ele pedia, porque ninguém ali era sócio da Força e Luz e o dinheiro não nascia em árvore e blá-blá-blá.

Nesse campo sagrado aprendemos a dar nossos pulos e a reiniciar o jogo quando ele pesava. Aprendemos também a não falar a palavra "desgraça" ("isso atrai coisa ruim") e que pisar "descalço no gelado" virava tosse.

A mãe é nossa instância mediadora, nosso primeiro e último recurso diante de qualquer encrenca. Era dela, e só dela, a decisão final entre acatar ou não as ordens das autoridades meramente formais das escolas, igrejas, governos. "Seu pai não pode saber disso". "Essa professora não sabe de nada". "O médico está errado."

Em casa aprendemos a ser avessos a qualquer autoridade, exceto a de nossa mãe – que abdicava do trono toda vez que, já na porta, enfiava dez reais no nosso bolso para ninguém sair liso de casa ou passar vergonha com os amigos. Para isso, já depois dos 30, passava as tardes trabalhando em restaurantes, lojas de roupa infantil ou cozinhas das vizinhas.

Um dia a dispersão se tornou inevitável e foi a mãe, não o pai, quem pesquisou tudo sobre a faculdade que eu rejeitava, láááááááááá na capital, quando não queria nada na vida, a não ser a continuidade daquela rotina de filho, com teto, almoço, café pronto ao acordar. "Você vai fazer o vestibular e pronto. Depois a gente vê o que faz."

Agora é ela quem olha as casas da vizinhança e diz imaginar o filho formado, já com o neto no colo, de volta à nossa cidade. E que liga para perguntar se iremos visitá-la no fim de semana – e, ao ouvir a negativa, lamenta: "mas eu já enchi o pneu da tua bicicleta".

Nem sempre nossas mães percebem que já não temos 12 anos. Que bom.

Com 12, 20, 40 ou 50 anos, qualquer piscadela para o tempo em que éramos apenas pais e filhos – a velha receita, o cheiro da velha casa, a foto amarelada, a música que tocava no rádio – é um convite para voltar ao útero, ou perto dele, e lá permanecer em paz, aquecido e em segurança.

Só que a vida entre adultos é uma vida entre distâncias, e elas não são calculadas apenas em quilômetros. Nem sempre nossos papéis estão ajustados às demandas dos novos corpos. Para um filho adulto, a noção de tempo é diferente do tempo, que muitas vezes sobra, dos pais envelhecidos.

A vida adulta nos faz desligar e reiniciar uma série de papéis, inclusive sobre os filhos que devemos ser para as mães – a minha mal disfarça a decepção por saber que não vou mais à missa e que nem sempre abro a agenda bíblica que ela me presenteia todo Natal há pelo menos 18 anos.

Mas na hora do aperto, principalmente com nossos filhos, não recorremos aos manuais, aos médicos, aos pedagogos. Vamos a um canto e ligamos para a mãe, que liga para a avó, que se conecta com a bisavó (nem que seja em oração).

Muitas vezes nosso cordão umbilical é alimentado durante dias, semanas, até um mês, com uma única mensagem de WhatsApp pela manhã. "Tudo bem por aí?". Tudo.

Houve um tempo em que a verdade não estava na resposta, mas no tom de voz. "Eu sou sua mãe. Não mente pra mim. Eu te conheço."

Com o tempo até esse radar começa a falhar. Porque aquele menino que se entregava no tom da voz aprendeu com a mãe a disfarçar as dores, inventar tarefas e não dar muita margem ao silêncio denunciador – da nossa falta de força e da nossa fé vacilante.

A mãe que dava a mão pra morder e compartilhar, jamais minimizar, a nossa dor quando tomávamos injeção precisa também descansar, ou pelo menos acreditar que somos agora sujeitos autônomos e seus serviços como escudo humano foram dispensados quando fizemos 18 anos.

Mas basta um dia sem mensagem em hora imprópria de WhatsApp. Um dia sem perguntas sobre quando será a próxima visita. Um dia sem preocupações aparentemente bobas sobre a vida que botou no mundo. E este mesmo mundo parece ser engolido pelo vórtice da desorientação. "Custava ter ligado?"

No domingo celebraremos juntos nosso 35º Dia das Mães, a única data realmente sagrada do nosso calendário.

Noves fora o gancho comercial e a forçada de barra de escolas desatentas às novas configurações familiares, o domingo dedicado a elas é a interrupção da rotina repetitiva, quase sempre imprópria a reflexões, para celebrar e lembrar as histórias que nos formaram e nos ensinaram a desafiar, desde o berço, a ordem do mundo – estejam nossas mães com a gente ou não.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.