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Matheus Pichonelli

Eu achava que sabia algo da vida até meu filho perguntar o que é saudade

Matheus Pichonelli

05/06/2018 04h00

Cena do filme

Cena do filme "Boyhood – da infância à juventude", de Richard Linklater

Agora começaram as perguntas do tipo existencial.

O que acontece quando o espírito vai embora do corpo?

Jesus tem dois pais?

O Super Homem já foi para Araraquara?

A cachorra sabe o meu nome?

É o caracol ou o caramujo que troca de casa?

Por que o Pelé não vai jogar a Copa?

O que é maior, a estátua da Liberdade ou o Buda do Templo da Primavera?

Por que o Mick Jagger chora quando vê as crianças brincando?

Essa última merece parênteses. Tudo começou quando ele ouviu (e se encantou) com a música "As Tears Go By", dos Rolling Stones.

Prestes a completar cinco anos, meu filho queria saber o que significavam aquelas palavras em inglês. Na música, o eu-lírico vai às lágrimas ao ver as crianças no parque fazendo coisas que ele costumava fazer, observando sorrisos que não eram para ele e percebendo que sua riqueza não poderia comprar tudo.

Mas por que as lágrimas rolam, pai?

Ensaio uma resposta. Porque ele tem… saudade. E como fala saudade em inglês?

Tente encontrar sinônimos para saudade em qualquer outro idioma. É inútil. A palavra não está nem sequer na música.

A busca por um sentido equivale a dar a volta ao mundo sem garantia de retorno. Lá, inalcançável, está o mistério da vida. Só.

"Acho que ele tem vontade de ser criança de novo", digo. "Mas por quê?". "Porque ele podia brincar, sem grandes preocupações e…". "…E você tem saudade de ser criança?".

Nesse momento, um portal para um passado recente se abre.

Cinco anos atrás, eu me preparava para cobrir um certo protesto prestes a explodir na avenida Paulista, onde morava, trabalhava e assistia a tudo o que pudesse ver no cinema havia quase 12 anos.

E então, numa consulta de rotina, a mãe descobriu que a gravidez deveria ser interrompida naquele dia, uma sexta-feira, 7 de junho. O filho corria riscos. Contávamos o sétimo mês da gestação, e ele quase já não crescia. Acabava de entrar no estágio que os médicos chamam de sofrimento fetal – basicamente o momento em que começam a escassear o oxigênio e os nutrientes.

Horas depois, observava em uma incubadora neonatal um ser de um quilo e cem gramas carregando no peito sem musculatura para respirar sozinho a primeira das muitas batalhas que viriam fora dali.

"Vamos, você consegue", eu dizia para ele. Ele, só com os olhos que custavam a abrir, já me enchia de perguntas.

Saímos de lá depois de 40 dias, passados em um quarto de pensão perto do hospital para facilitar as três visitas diárias, interrompidas para acompanhar e escrever sobre os maiores protestos da história recente do país. Estávamos em junho de 2013, e quem estava nas ruas pedia desculpas pelos transtornos: estavam mudando o país.

Mal sabia que uma verdadeira revolução estava prestes a acontecer dentro de casa, e que aquele quarto-sala-cozinha-escritório, longe do epicentro dos protestos, era também uma espécie de incubadora para adultos. No fim, tivemos sorte: adiantamos por algumas semanas nosso convívio, pudemos nos ver e conversar numa barriga transparente, de acrílico, onde ele já dava sinais de inquietude e da própria personalidade. Nós aprendíamos também a respirar e ganhar força. Mãe e pai estavam nascendo.

Desde então, é ele quem me avisa quando tudo já mudou. Bikiketa agora é bicicleta. Caxoxo é cachorro. Cacu é Cascão. Baxi é Marcha Soldado. Deseno é desenho. Paleras é Palmeiras. Cotiliano é corintiano. Caleça, cabeça. Tóio é colo. O Igu agora é Igor. E dormir não é mais mumí.

Inconscientemente eu ainda falo as palavras com os erros dos primeiros anos, mas ele, crescidinho, me corrige. E ensaia uma lógica própria de ver o mundo: "eu vou demorar para ficar careca, o meu pai tá demorando e o meu vô já demorou".

E onde estão os olhos do desenho do avô? "Ué, do outro lado!"

É tudo tão óbvio que temos vergonha de ter perguntado.

Agora com cinco anos, tropeçamos todos os dias nas sinceridades que não devíamos perder jamais. Ou devíamos? "Pai, tem duas senhoras no elevador" (ufa, penso comigo, antes de ele completar: "Porque não pode chamar de velha, né?").

Ou mesmo quando encontra uma das gêmeas no parque, pergunta qual delas ela é e diz que gosta mesmo é da outra.

Uma criança de cinco anos pelo mundo é um touro numa sala de cristal – e uma coisa aprendemos nesse tempo todo: a sala é que está no lugar errado.

A essa altura, sofremos, de certa forma, por saber que o mundo já prepara as tesouras para podar nele o que não se enquadra num conceito de normalidade – e normalidade, para os adultos, é ser igual a todo mundo: obediente, banal e sem graça.

Os amigos e familiares mais próximos vivem chateados. Nem sempre podemos aparecer nas festas ou eventos sociais, principalmente quando estão marcados para depois das 22h, está frio e a balada não tem espaço kids.

Sair de casa já é se aventurar, e sentar para comer, um delírio – não tenho memória dele caminhando, apenas fazendo força para ficar de pé, voltar a engatinhar e, na cena seguinte, sair correndo, num rastro de brinquedos, poeira, mãe e pai.

Muda o corpo, mudam os pensamentos, mudam os desafios, como ter que jogar futebol às seis da manhã sem tirar o pijama.

Falta fôlego, sobram histórias. Já não ensino, aprendo. De tudo, o mais fascinante é observar o encanto dos primeiros encontros, os primeiros sabores, as primeiras descobertas.

"Hein, pai? Você tem saudade de quando era criança?"

Ainda esse assunto?

Eu responderia se soubesse explicar que não. "Não tenho saudade porque simplesmente você ainda não estava aqui".

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.