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Matheus Pichonelli

Neymar é ícone de uma geração que não sabe onde está a verdade

Matheus Pichonelli

30/07/2018 16h07

Imagem: Reprodução

Neymar se pronunciou. Depois que suas constantes quedas em campo viraram sinônimo de (má) atuação, e ganharem o mundo com memes e vídeos de deboche, o craque do PSG e da seleção brasileira decidiu divulgar uma espécie de desabafo público para rebater as pedradas.

Como? Em uma propaganda de lâmina de barbear divulgada em horário nobre da TV. "Você pode continuar jogando pedra, ou pode jogar essas pedras fora e me ajudar a ficar de pé", disse.

Até o fechamento deste post, não faltaram pedras arremessadas no atacante justamente no momento em que todo mundo começava a se esquecer da queda, esta menos literal, da seleção na Copa.

Deus, se existir, e meus poucos leitores, se estiverem lembrados, sabem que destas mãos que agora escrevem não partiu pedra alguma.

Durante o Mundial, falei, por aqui, da minha implicância com a implicância de parte da torcida em relação ao nosso melhor jogador. Porque criticar Neymar me parece uma forma de criticar um pouco do que é ser brasileiro, como se só por aqui houvesse malandragem ou cinismo, e esta malandragem estivesse toda incorporada num único atleta. Sintoma típico da nossa síndrome do vira-lata, como dizia Nelson Rodrigues sobre a nossa autoindulgência que transforma a autoestima nacional em mera "arrogância".

Estas mãos seguem despidas de pedras, mas não deixa de ser um choque observar a forma como o atleta de talento indiscutível se propõe a desmentir os exageros em supostamente cavar faltas e mostrar que seu sofrimento é real: numa propaganda de lâmina de barbear.

Sou sempre da opinião de que a figura pública, a não ser que seja eleita pelo voto, não tem obrigação de se pronunciar sobre o que pensa e o que faz, dentro ou fora de campo.

Mas tenho a impressão de que a estratégia de manipulação, inclusive do menino, que já não é menino, chegou a um outro patamar. Algo realmente a ser estudado.

A relação ídolo-fã não é, ou não deveria ser, uma relação comercial, do tipo patrão-empregado: "eu compro sua camisa, assisto seus jogos, vou ao estádio, logo exijo o seu/meu troféu". Óbvio dizer isso.

Mas algo na construção, ou tentativa de reconstrução, da imagem do ídolo parece cimentado em material oco, artificial. Não sabemos se foi ele quem escreveu o texto. Se foi ele quem aprovou a peça. Se o pai dele deixou. Se foi ele quem decidiu que o melhor canal para obter o reconhecimento do sofrimento era mesmo uma propaganda que justamente reforça a ideia de que a relação ídolo e torcida é simplesmente um produto embalado para comercial.

Um produto que não fala nada que não esteja no script ou que não seja aprovado por um estafe. Que não tenha os passos, as falas e até as pausas retóricas minimamente calculados.

Neymar, talvez sem se dar conta, parece ter se tornado o símbolo de uma geração que já não sabe mais o que é falso (fake, para os íntimos) e o que é verdade. Ou onde as duas coisas se encontram.

Essa geração consome e compartilha informação sem saber a veracidade. Nossos afetos e emoções, do medo à disposição de abrir a carteira, são alvo para todo tipo de manipulação. Elas visam antes nossas convicções, nossa fé, do que nossa capacidade de filtrar, organizar e refletir sobre o mundo em que vivemos.

Esse mundo tem sido pautado pelos sinais trocados do espetáculo. Não sabemos se as mãos em cima do rosto do jogador escondem as lágrimas por vergonha ou a vergonha de ter o rosto sem lágrimas.

Tudo parece uma grande atuação. Um grande truque pelo qual criamos imagens, hologramas, reputações. Uma grande estratégia de posicionamento de marca.

Em uma época marcada pela ausência de referências, erra quem imagina que a nossa carência é decorrente da falta de ídolos ou talentos. Não é. Ela é explicada pela falta de estofo entre ato e fala, ação e intenção. Ser ou não ser, diria o poeta. Entre uma coisa e outra estão os planos e estratégias costuradas por especialistas em marketing e gestão de carreiras.

Essa carência talvez explique o encanto provocado por quem parece falar sem ensaios ou papas na língua. A estupidez se tornou uma arma de identificação. Serve para o comediante boquirroto, mas serve também para eleger presidentes. Porque, dizem os encantados, "ao menos fala o que pensa". Esse "ao menos" é muito pouco. Mas não para quem, cansado de maquiagens, já não sabe onde a farsa e a realidade dobraram a esquina.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.