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Matheus Pichonelli

Cuidado: o sonho da casa própria pode ser uma prisão com quintal e janela

Matheus Pichonelli

06/09/2018 04h00

Foto: Getty Images

Na metade da visita eles reclamaram do Brasil, dos pedreiros, das opções eleitorais, da roubalheira, da malandragem. Na outra metade, da esperança de alguém de pulso firme (não vamos dizer quem) assumir a Presidência e botar ordem na bodega. Mas foi só a corretora, que fazia o trabalho dela, entrar num dos quartos para o dono da casa me puxar no canto e colocar no meu bolso um papel com seu telefone. A piscadela era uma oferta para negociar diretamente com ele sem pagar comissão.

Tentar comprar uma casa é entender como funciona um país. Aquela, disse o proprietário, com o cabelo atolado de gel e o cavalinho gigante na camiseta, foi construída para o filho, que preferiu morar em Miami.

Na versão extraoficial, ele deu o passo maior que a perna, faliu e precisava se livrar de tudo o quanto antes.

Pouco importava, mas aquele bilhete clandestino quebrou o que deveria haver entre nós antes de tomar uma decisão tão delicada – e cara. Quebrou a confiança.

Anos atrás, eu decidi me mudar para o interior porque me negava a pagar o preço de um castelo por uma quitinete com vista para um posto de gasolina e um galpão abandonado à espera da valorização. Uma quitinete que só terminaria de pagar perto dos 50 anos.

No interior, poderíamos viver numa casca de noz desde que não estivesse contaminada pela fumaça de escapamentos. Aos poucos me tornei aquela pessoa que cai na propaganda da margarina e quer um sábado de sol para correr atrás dos filhos com a mangueira d'água.

O problema é que, se você não quer viver num sítio, deve ceder à tentação do condomínio, desses em que o maior atrativo é um segurança armado com óculos escuros que segue até a porta o entregador de pizza, nosso único ponto de contato com a cidade, uma entre tantas que já não têm museu, cinema, teatro. Quem precisa de tudo isso se toda a história da civilização cabe na memória do Google?

Anos atrás, alugamos um sobrado de condomínio que ficou grande demais para o sujeito que ganhou a casa dos pais e se separou pouco depois. Ele aparentemente se casou de novo e não demorou a pedir a casa de volta – a foto de seu ídolo, um juiz de primeira instância, no Facebook não o constrangeu em pedir para negociar por fora a multa pela quebra de contrato.

Corremos de lá e achamos a duras penas outro lugar. Mas casas destelham. Os azulejos quebram. Os banheiros entopem. As árvores se expandem. Tanto custo extra só faz sentido se aquele espaço fosse nosso.

Foi assim que entramos no devaneio de comprar casa com varanda e conhecemos o sujeito do bilhete. Conhecemos também a dona de uma outra casa que topou o negócio, desligou o telefone e ligou para outros interessados dizendo que, se eles não pagassem X a mais, fecharia com a gente. Conhecemos ainda os donos de um sobrado que nos esperaram levantar, após uma epopeia de comprovantes e declarações, o financiamento no banco para avisar que a casa não estava com a documentação regularizada, provavelmente por alguma mutreta no projeto original – e isso significava um preço extra no combinado.

Não sei vocês, mas o sonho da casa própria para nós se tornou, assim, um pesadelo com quintal e janela. Observo os cômodos e só visualizo boletos entre tijolos, trabalhos extras para bancar tudo e uma corda com juros bancários para amarrar qualquer projeto pelos próximos 30 anos.

Na próxima vida quero ser herdeiro. Até lá, fico apenas com a margarina.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.