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Matheus Pichonelli

Em pleno 2018, venerar "líder supremo" é o fracasso da inteligência

Matheus Pichonelli

02/10/2018 04h00

Cena do filme "Meu Malvado Favorito"

Quando alguém me pede para pular do 10º andar, eu costumo dizer que não, obrigado, pois sou um sujeito moderno. Explico, em seguida, que ser moderno não é estar na moda. Desde o fim da Idade Média, é ser consciente de pensamentos e responsável pelos atos.

E um aspecto central da nossa consciência, mesmo em tempos pós-modernos, é não colocar nossa integridade, nossa inteligência ou a nossa dignidade a serviço de qualquer comando. Não pulo, logo, existo.

Não faz muito tempo, achava que essa relação entre nós, indivíduos dotados de consciência e inteligência em um sistema democrático que aceitava todas as aptidões, era uma coisa "dada". E que ferramentas como internet e redes sociais seriam o big bang do nosso universo em expansão.

Conectados, poderíamos viver cada vez mais com menos; teríamos informações suficientes para criar nossas próprias marcas, gostos e histórias em cidades sustentáveis — e menos dependentes de deslocamentos e combustíveis poluentes.

Quem não tinha voz começaria a falar; quem se imaginava sozinho poderia se conectar. E conexão era algo mais do que uma linha de banda larga; era a possibilidade de encontros e identidades.

Com tantas vozes, ninguém precisaria ser chamado de "aberração" por desrespeitar uma ideia de "normalidade". Normal, afinal, era ser diferente – sobretudo respeitar as diferenças.

Essa projeção de futuro estava ilustrada no filme "Hoje Eu Quero Voltar Sozinho", de Daniel Ribeiro. De mãos dadas, o menino com deficiência visual e o amigo já não eram rejeitados; rejeitado era o babaca que tentava fazer piada e hostilizar uma forma legítima de amar e se relacionar.

Quando o filme foi lançado, em 2014, muito se falava sobre diversidade e relações horizontalizadas, sem líderes formais — uma revolução para quem aprendeu calado o que era certo e errado em sala de aula, na igreja, em casa, no trabalho.

Nesse novo mundo, as decisões seriam compartilhadas, e não impostas por quem detinha "a verdade". Aquela liderança autoritária, do "meu contra o seu", do "é ou não é", que não respeitava diferenças nem ouvia contraposições, estava com os dias contados.

Um exemplo desse novo modelo de gestão era o Canadá do primeiro-ministro Justin Trudeau, que em 2015 nomeou um governo igualitário de 30 ministérios, dividido entre 15 homens, entre eles quatro ministros de origem estrangeira, e 15 mulheres. Quando perguntado por que, ele respondeu: "Porque é 2015".

Enquanto isso, por aqui, diversidade virava sinônimo de "ataque" contra a família, pensada como modelo único; estrangeiro virava "escória" e candidato que ensinava criança a pegar em arma e defendia porrada para "corrigir" a sexualidade virava "mito". Vai entender.

Vendo as manifestações de amor irracional demonstrada nessa eleição, com hashtags em defesa justamente de quem hostiliza a diversidade, o contraditório e até mesmo o sistema de votação, penso que esse mundo imaginado por nós na virada da década ficou apenas na ilusão.

Cem anos atrás, o ditador italiano Benito Mussolini usou pela primeira vez a expressão fascismo como um símbolo de unidade e de poder na Roma antiga. A palavra vinha do italiano "fascio", que significa "feixe". Imagine um graveto: a ideia é que um graveto pode ser facilmente quebrado; mas, em conjunto, encaram qualquer machado. Parece lindo, não?

O problema é que, se a pessoa não está de acordo com a ideia de ser graveto e questiona que unidade é essa, para que serve, para onde leva, com quem e contra quem está lutando, é prontamente acusada de estar contra a ordem. Torna-se inimiga. E uma inimiga prestes a ser destruída. Como um graveto solitário.

Cem anos depois, após o trauma de duas grandes Guerras, a expectativa era viver em um mundo conectado e em expansão, livre de preconceitos e perseguições.

A realidade é que, com as redes sociais, nos tornamos indivíduos apequenados e escravizados pelo esgoto de WhatsApp; presos às telas de celular, agimos como robôs que não pensam por si e distribuem a rodo frases-feitas, grosserias, mentiras, perversidade e verdades torturadas contra as quais parece não haver argumento. Quem não está junto, está contra. Quem não obedece, está fora. Como assim?

Em pleno 2018, a paixão por um "líder supremo" é o fracasso de uma ideia de civilização que minha geração alimentou.

Reagir a isso, como milhões de mulheres fizeram no últimos sábado, é colocar a esperança à frente do ódio, da raiva e do medo. É fazer com que o fascínio pelas trevas seja, no fim, o último soluço de um passado do qual precisamos nos despedir.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.