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Matheus Pichonelli

E se 2018 for, na verdade, uma grande pegadinha de mau gosto?

Matheus Pichonelli

26/10/2018 04h00

Cena do filme "Show de Truman"

Durante muito tempo, acreditei que o grande problema das pessoas ao meu redor era agir como se fossem o centro do mundo. Estava errado.

Hoje, eu sei a verdade e a verdade é que o centro do mundo sou eu.

Isso mesmo, amigos, ninguém me engana mais: eu sei que quando vocês saem de cena, entram em uma cabine de vidros fumê para observar até onde vai minha sanidade. Vocês me veem, e eu não vejo vocês.

Estou imerso em um cenário (bem montado, preciso reconhecer) ao estilo "Show de Truman", aquele filme do Jim Carrey que vocês inventaram para me fazer pensar no absurdo que é supor a nossa própria vida como uma realidade simulada para um programa de TV.

Só isso explica a grande pegadinha que vocês criaram para ver até onde aguento neste ano de provações.

Vocês me enganaram em todas as minhas festas surpresas de aniversário, mas dessa vez não me enganam. E não vou fingir surpresa quando vocês furarem o cenário e mostrarem que o besteirol de tonalidade autoritária promovida durante a eleição foi apenas encenação com uma moral ao fim da história (espero que com letra minúscula).

Prometo perdoar vocês quando me contarem que o Jair, na verdade, é um ator homônimo que no fim vai avisar "é preciso ter cuidado com esse tipo de maluco aí, tá ok?". Esse ator só foi escalado para todo mundo saber até onde sou capaz de defender os valores que vocês me ensinaram desde que nasci – mais precisamente quando esse reality show começou.

A começar por estudar. Desde pequeno, lembro de meus parentes e professores falando da necessidade de pensar por si; que opinião não é ponto de vista; que é preciso desconfiar de frases-feitas e das verdades absolutas; que os tempos de suserania e vassalagem acabaram, que só o conhecimento poderia nos livrar do porão do sofrimento e que todo sofrimento era fruto da ignorância. Que era preciso, portanto, ouvir e ler quem havia vivido e lido mais do que a gente para formar nossa visão de mundo e encará-lo como uma esfinge.

Para isso, vocês disseram, era melhor gastar minha primeira mesada em livros do que guardar dinheiro para carro importado no futuro. Vocês me juraram que essa vida materialista não me daria estofo, e que as melhores coisas da vida eram gratuitas. Vocês me deram amores e amizades, e juraram que havia muito a aprender em cada decepção.

Mas o que mais preciso aprender?

Esse reality show que vocês me colocaram começou a ficar inverossímil quando a grande livraria da nossa cidade entrou com pedido de recuperação judicial bem na semana em que as groselhas sem nuances ou inteligência literária espalhadas nas redes estão prestes a decidir as eleições.

Podem contar a verdade: vocês queriam ver em que momento eu jogaria a toalha e assumiria o WhatsApp como a fonte de toda informação e sabedoria contemporânea, não é verdade?

Pois resistirei. Mesmo vocês fazendo meu time tomar uma sova na Argentina em jogo decisivo de uma semana decisiva.

Atrás desse vidro, vocês estão ansiosos para saber em que momento vou me render à tentação de quebrar o pacto assinado entre nós desde a escola: não gritar, não ofender, ser gentil, discreto, não ameaçar, não prometer varrer da minha vista quem não pensa como eu; não usar o santo nome em vão, não ser indiferente ao sofrimento alheio, à morte, à guerra, não debochar das diferenças, não referendar privilégio como causas naturais, não aceitar que a vida é só sentar e obedecer, dividir o que me sobra, acolher quem não tem abrigo, plantar árvores, cuidar das plantas e animais, não aceitar violências, não subir na vida em cima de ninguém. Não agir como se fosse o dono do mundo, enfim.

Em que momento vocês resolveram consagrar quem representa o exato oposto de tudo isso? Foi só para me testar? Para mostrar que todos podem se dobrar quando sentem medo?

Eu sei: os roteiristas deste filme fizeram um turning point e me jogaram na fase mais dramática da série. Querem saber se, diante da multidão enfurecida, eu vou mostrar no fim que também sou reprovável chutando tudo o que ensinaram por uma conversa barata sobre vagabundos, mamata, teta do governo, coitadismo e lamentos do tipo "matou foi pouco".

Tudo para alguém me dizer ao fim da trama: viu só como é fácil repetir experiências autoritárias que você imaginava abolidas pelo bom senso? Viu como a sua integridade também é relativa? Viu só como podemos mudar o que somos quando todos normalizam as maiores insanidades?

Se querem spoiler: essa realidade que vocês inventaram é tosca demais para me dobrar.

Vou continuar aqui onde sempre estive, em dúvida sobre minhas escolhas como sempre estive, e ouvindo minhas músicas todas as vezes que o desespero bater à porta. Uma dessas músicas, de quem vocês agora chamam de vendido após me venderem como gênio, me ensinou: "filha do medo, a raiva é mãe da covardia".

Eu posso não saber onde vocês esconderam as câmeras dessa pegadinha. Mas covarde eu não sou. E vocês?

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.