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Matheus Pichonelli

Por que devemos ter medo do discurso da Regina Duarte?

Matheus Pichonelli

26/10/2018 14h49

Foto: reprodução/Twitter

Regina Duarte fez foto e declarou apoio a Jair Bolsonaro.

Um direito dela, como é também dos 56% dos eleitores que manifestam preferência pelo candidato que elegeu o "politicamente correto" como grande mal nacional e que durante a campanha prometeu metralhar e varrer os opositores do país.

Em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, a atriz descreveu o presidenciável como "um homem dos anos 1950, como meu pai, e que faz brincadeiras homofóbicas, mas é da boca pra fora, um jeito masculino que vem desde Monteiro Lobato, que chamava o brasileiro de preguiçoso e que dizia que lugar de negro é na cozinha".

A frase resume um dos nós da atual campanha: ela não apenas tirou do armário nossa preferência eleitoral, mas também a forma como vemos o mundo e confessamos em voz alta  nossos próprios preconceitos de classe. Basta lembrar o que este mesmo candidato declarou, para delírio de uma plateia apaixonada, sobre minorias: ou elas se curvam ou procuram outro lugar para viver.

Parece assustador, e é. Principalmente se alguém lembrar que o Brasil é o país que mata uma pessoa LGBT a cada 19 horas e onde um jovem negro tem três vezes mais chance de ser assassinado do que um branco da mesma idade.

Nenhum desses crimes é praticado da boca para fora, mas o que sai da boca das pessoas públicas, como artistas e candidatos a presidente (exemplos meramente ilustrativos) ajuda a legitimar o terreno para a prática de todo tipo de violência contra eles.

Afinal, eles não se "dobraram" — muitos cometeram os crimes de sair de mãos dadas com a pessoa amada, deram bandeira demais sobre a cor da pele ou não souberam se curvar a quem sempre mandou no país.

Anos de luta por igualdade de direitos e acesso a espaços ocupados por quem lucrou e não sofreu com 300 anos de escravidão e outros tantos de exclusão são agora chamados de "coitadismo". Acabar com "coitadismo" virou mote de campanha: rende votos e suspiros de quem jamais demonstrou indignação com um país marcado pela exclusão.

Esse país era ainda mais violento e mais excludente nos anos 50, e a saudade romantizada do passado parece disfarçar o lamento de quem nasceu após a Lei Áurea ou a ascensão do movimento gay em San Francisco e de lá para o resto do mundo.

Para quem se notabilizou publicizando o medo na eleição de 2002, Regina Duarte parece à vontade com o fato de o Brasil de 2018 ser governado por um homem dos anos 1950, que busca na experiência autoritária do passado as chaves para resolver as questões do mundo atual.

O mundo atual é um mundo conectado, veloz, tomado de desafios contemporâneos, que convive com a diversidade e desmontou uma a uma as justificativas para os preconceitos que confinavam boa parte da humanidade à escuridão do armário, da vergonha, do transtorno, da violência e da falta de acolhimento.

Com tantos sinais emitidos ao longo da campanha sobre qual é o lugar de cada um no futuro país inspirado no passado, amenizar discurso do ódio como manifestação da boca para fora é uma tentativa incontida de passar o pano no próprio ódio — da boca para fora, é só um jeito fofo de dizer que o sofrimento alheio não importa.

Sabemos como se manifesta o preconceito "da boca pra fora": nada contra, desde que longe; nada contra, desde que não se relacionem como nossos filhos; nada contra, desde que não saiam por aí reclamando o direito de ser… gente. Ou de ocupar outros espaços que não seja cozinha.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.