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Matheus Pichonelli

Bolsonaro, "golden shower" e a carnavalização da política brasileira

Matheus Pichonelli

07/03/2019 05h00

 

(Foto: iStock)

No último texto, falamos por aqui sobre um tipo de folião incapaz de passar os cinco dias de Carnaval sem dizer o quanto odeia Carnaval e todo tipo de manifestações artísticas e populares do Brasil, associadas quase sempre a promiscuidade, sujeira, desordem e degeneração moral. Um caso de psicanálise, talvez, que transforma desejos reprimidos e autocensura, com toques de recalque, não em indiferença, mas em ojeriza, como se precisássemos sempre atacar alguém para afogar uma pulsão que vive em nós.

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Esquecemos de dizer que, entre esse tipo de brasileiro que diz amar o Brasil mas despreza sua cultura não estão só comentaristas de TV para quem o folião é um sujeito destituído de discernimento e refém de "estímulos" supostamente contraditórios entre campanhas de prevenção (leia-se "transe com camisinha") e campanhas antiassédio (leia-se "sexo não é violência", "respeite as mina", "não é não"). Está também o presidente da República.

Pois, enquanto as ruas demonstravam que o atraso teria de suar para impor sua agenda ao Brasil real, como bem lembrou o Leonardo Sakamoto, Jair Bolsonaro tentava vestir de toda forma a fantasia do superego, ora defendendo o uso, por agentes públicos ou não (vulgo todo mundo), da ampliação da letalidade, ora anunciando uma certa "Lava Jato da Educação", entre outros sinais de que, sob seu governo, a Quarta-Feira de Cinzas seria mais cinza do que em anos anteriores.

Alvo de deboche pelas ruas, e vendo nos desfiles das escolas de samba vigorosas manifestações políticas em defesa de minorias e dos relegados pela História, o presidente encerrou a festa com um tiro de canhão: o compartilhamento de um vídeo obsceno em que uma pessoa urina em outra durante a festa.

"É isto o que tem virado muitos blocos de rua no carnaval brasileiro. Comentem e tirem suas conslusões (sic)", escreveu Bolsonaro.

Se você, como eu, pulou o Carnaval com sua família e não viu nada parecido com o vídeo, ou te enganaram ou você desfilou no lugar errado.

Fora do contexto, a cena servia para estereotipar todo um grupo social (os foliões), como definiu o Rodrigo Ratier e, até o fechamento deste post, ninguém sabia onde, quando e quem a havia flagrado. Uma pergunta ficou no ar: que tipo de grupo de WhatsApp o presidente anda frequentando? E mais: como tem lidado com as próprias compulsões?

Com tal conteúdo, o post recebeu um alerta do próprio Twitter: "ocultamos automaticamente vídeos com possível conteúdo sensível ou impróprio".

A postagem logo se tornou o assunto principal do país e, voluntariamente ou não, mudou o patamar das discussões, até então pautadas pelas críticas ácidas de escolas de samba como a Mangueira, campeã do Carnaval – e as críticas às críticas, e às críticas às críticas às críticas.

No dia seguinte, as perguntas já não diziam respeito à politização do Carnaval brasileiro, mas da carnavalização (no sentido pejorativo, pois deslocada do lugar original) da política nacional, um fenômeno que Bolsonaro parece ser antes a consequência do que a causa.

Em tempos de redes sociais, que exigem concisão do discurso, apelo a imagens de impacto e slogans de fácil assimilação, a política brasileira deu impulso justamente a quem grita mais e pensa menos.

Assim, os espaços para brincadeira viraram plataformas de assuntos sérios (violência, desrespeito, preconceitos), enquanto os espaços dos debates sérios foram, aos poucos, infantilizados – basta lembrar os recados tipo Xou da Xuxa ("beijo pra minha mãe, pra minha vó, pra todas a minha família e especialmente pra você") durante as sessões do impeachment, as cantorias de fundão da sala com plaquinhas e hashtags das grandes discussões e até mesmo o protesto de parlamentares do PSOL que levaram laranjas aos corredores do Congresso em alusão ao caso do motorista Fabrício Queiroz, ex-assessor e amigo da família Bolsonaro.

Quem, nessa época, ainda opta em agir como adulto, tentando mostrar que "veja bem, não é por aí, as coisas são mais complexas do que esse maniqueísmo raso" é imediatamente engolido pelos berros de quem aprendeu que redes sociais, quando usadas para forçar narrativas, são o túmulo da razão e do bom senso.

O tuíte de Bolsonaro é a prova disso.

Na guerra pela audiência nas redes, o Brasil está na mão de meninos arteiros que, embora envelhecidos, parecem desconhecer a responsabilidade das próprias palavras, gestos e ações. Querem criar indignação e chamar a atenção para uma suposta obscenidade de uma festa popular compartilhando e se lambuzando em suas próprias vulgaridades – a maior delas, o escapismo.

Faz algum sentido? No Brasil de 2019 faz.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.