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Matheus Pichonelli

Ato falho de Bolsonaro revela desprestígio de Damares e seu ministério

Matheus Pichonelli

23/03/2019 04h00

O presidente da República, Jair Bolsonaro e a Ministra da mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, na cerimônia de posse. Foto: Fátima Meira/Futura Press/Estadão Conteúdo

 

O ato falho é uma espécie de confissão em voz alta. Em forma de "erro" ou desatenção, bota para fora o que não admitimos pensar.

Na gestão Bolsonaro, o lapso ficou tão recorrente que já nem provoca arrepios. Deveria.

Na última quinta-feira, durante uma transmissão ao vivo nas redes sociais, em Santiago, o presidente foi vítima da própria linguagem – ou do inconsciente? – ao dizer que Damares Alves, responsável pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, é uma ministra com importância não muito grande.

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Você, a essa altura, deve estar se perguntando o que o "não" fazia ali. Pois é.

Durante a transmissão, Bolsonaro jurou que tem o hábito de ouvir seus ministros antes de tomar qualquer decisão. "Eu tenho que ter responsabilidade. Até com a Damares, que podem achar que é uma ministra com uma importância não muito grande, mas tem importância. A Damares é uma ministra que trata da questão da família, direitos humanos, eu conto com ela e está fazendo um trabalho excepcional no seu ministério", disse.

A fala lembrava a bronca de um usuário do sistema de saúde que viralizou após uma entrevista para a TV: "Tava bom, falaram que ia melhorar, já não tava muito bom, tava ruim também, agora parece que piorou".

A diferença é que, desta vez, o dito que se desdiz parte do próprio presidente.

E o que isso tem de grave?

Bem. O atual governo tem 22 ministros, composto por 20 homens e duas mulheres – numa brincadeira, Bolsonaro disse que a proporção era equilibrada, pois cada ministra equivalia a dez homens. Até aí, tudo ok?

No governo federal, é Damares quem articula, por exemplo, mudanças na lei que podem instituir a educação domiciliar no Brasil. Não é pouco (o que não significa que é bom).

Se a ideia era dizer que todos têm importância, mesmo a Damares, um limite espacial, de distância ou superfície, fica automaticamente estabelecido com o "até". Para bom entendedor, meia prioridade basta.

A fala do presidente revela, pela falha, não só o que ele pensa sobre sua subordinada, mas sobre os temas pelos quais ela é, ou deveria ser, responsável: mulheres, família, direitos humanos.

Se algo disso tivesse importância para o governo, talvez Bolsonaro pensasse duas vezes antes de elogiar ditadores como o chileno Augusto Pinochet, acusado de crimes contra a humanidade e cuja ditadura prendeu e estuprou mais de 3 mil mulheres, segundo a Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura local.

Se tivesse esse cuidado, quem sabe o presidente do Senado do Chile, Jaime Quintana Leal, aceitasse participar de um almoço com o chefe do Executivo brasileiro.

Durante a transição, Bolsonaro chegou a anunciar a criação de um ministério que envolveria "tudo isso aí, mulheres, igualdade racial, tá certo?".

Não precisava dizer mais que isso, embora no passado já tenha atribuído as demandas de grupos vulneráveis a "coitadismo"- justamente quem mais morre por crimes de ódio no país.

Nada disso, porém, parece preocupar os novos inquilinos do Planalto, ocupados que estão em combater os fantasmas do comunismo ou denunciar o que as pessoas fazem ou deixam de fazer no Carnaval.

A má notícia, para o governo, é que as patadas começam a acertar quem mais esperava postura de presidente do…presidente. (e isso talvez explique a queda de 15% de apoio à sua gestão apontada pelo Ibope).

Dias atrás, Bolsonaro declarou apoio ao muro de Donald Trump na fronteira do México com os EUA por uma razão simples: "A maioria dos imigrantes não tem boas intenções".

A frase foi dita por um filho de imigrantes italianos que, em 2018, recebeu mais de 110 mil votos de brasileiros que vivem no exterior – para se ter uma ideia, o segundo colocado, Ciro Gomes, recebeu apenas 27 mil votos.

Horas depois, Bolsonaro se corrigiu. Disse que, na verdade, queria dizer o contrário: que grande parte dos imigrantes tem boas intenções, e só não disse nada disso antes por um "ato falho". Taokey?

Nada mal para quem, na mesma viagem, afirmou que seu projeto de governo não era construir coisas para o povo brasileiro, mas desconstruir. "Temos é que desconstruir muita coisa. Desfazer muita coisa. Para depois nós começarmos a fazer". (Ele falava em destruir a "ideologia de esquerda", mas a pérola estava pronta).

Os episódios fazem desconfiar que o ato falho não esteja só na fala, mas no próprio detentor da faixa presidencial. Os tropeços linguísticos reforçam não uma dificuldade de articulação, mas uma forma de ver o mundo.

Quer ver? Durante a campanha, foi o próprio presidente quem declarou, em outro ato falho, ser vítima do que ele mesmo pregava. Era uma tentativa de resposta aos atos de violência promovidos por seus eleitores aos não simpatizantes de seu governo.

Entre ditos e desditos, feitos e desfeitos, anúncios e correções, a impressão é que os trabalhos de fato sequer começaram no novo governo. Só não sabemos se isso é bom ou ruim.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.