A obsessão do brasileiro em parecer normal precisa ser estudada
O que é ser normal no Brasil hoje?
Há uma semana tenho feito essa pergunta. Mais precisamente, desde que o presidente do Banco do Brasil, Rubem Novaes, fez a seguinte análise sociológica do país pré-revolução de 2018: "O 'empoderamento' de minorias era o instrumento acionado em diversas manifestações culturais: novelas, filmes, exposições de arte etc., onde se procurava caracterizar o cidadão 'normal' como a exceção e a exceção como regra".
Para responder a pergunta do início do texto, pensei em aplicar um questionário aos amigos que juram ter sofrido durante anos o peso da discriminação por serem… "normais".
Um deles é conhecido por bater no peito para descrever as raquetadas aplicadas pelo pai toda vez que ameaçava se desviar de um certo padrão gestual e normativo.
"Eu apanhei e não fiquei traumatizado, não fico de mimimi, e agora sou o tipo cidadão respeitável que ganho meus cruzeiros por mês", costuma dizer ele, espumando, como se quisesse disfarçar alguma coisa – as olheiras profundas, as compulsões, a dificuldade em se relacionar, a insegurança, os acessos de raiva, as horas gastas na internet xingando todo mundo, os tiques nervosos e a preocupação excessiva com os modos de vida de tudo o que não é ele me deixam desconfiados de que talvez, de repente, quem sabe, ele não esteja tão pleno assim com as próprias convicções.
Resolvi, no fim, pesquisar para saber o que diziam os leitores sobre a fala do presidente do BB. Soube, então, que:
"O sujeito normal é aquele que levanta cedo e vai trabalhar, produzir, contribuir com a sociedade, estudar para evoluir sempre e não aquele que pinta o cabelo de cor de rosa demonstrando desequilíbrio";
"Cidadão normal, tipo aquele que o banco nunca deu atenção";
"Que vive conforme a norma ou regra; que serve de modelo; exemplar; regular; habitual; ordinário";
"Não ser financiado pela Nova Ordem Mundial: ser ma.conheiro, feminista aborteira tatuada, f.unkeiro, VlAD0, ne.gro agitador de nádegas etc etc;"
"Ser normal é rejeitar a 'sociedade alternativa' que os meios de comunicação procuravam impor";
Não sei vocês, mas quanto mais ouço falar em normalidade, mais lembro do casal neurótico, e muito louco, interpretado por Fernanda Torres e Luiz Fernando Guimarães na série "Os Normais", da TV Globo. Ali, de fato, ser anormal era hilariamente normal.
Não é disso, porém, que falam os comentaristas de portal, o presidente do BB entre eles.
Na cabeça dos supostos cidadãos "comuns", existe uma confusão enorme entre "normalidade" e heteronormatividade*, como se qualquer "desvio" a essa padrão fosse também um desvio de conduta. Essa confusão não se dá à toa.
Lendo suas manifestações, fico em dúvida se o problema dessa galera é a incapacidade de ver o mundo fora do umbigo ou se o Brasil vive uma epidemia de normalopatia, a doença de quem quer ou tenta ser "normal" o tempo todo.
Sobre esse fenômeno, o psicanalista Christian Dunker resumiu certa vez, em uma palestra: o "normalopata" é o sujeito que não sofre, que está sempre bem, e para quem é sempre o mundo é que está caindo.
Se não for isso, é possível que estejamos apenas comprando muito facilmente respostas-prontas sobre um mundo imaginário – e basta sair um pouco do celular e andar cinco minutos pelo centro de qualquer cidade para ver que os personagens da propaganda, apontados pelos PhDs em normalidade como 'aberração", são, na verdade, um país inteiro – um país, inclusive, com inúmeros arranjos familiares, todos eles legítimos.
Nessas horas lembro do documentário "Waiting for B.", que acompanhou durante meses a rotina de jovens periféricos, a maioria negros e gays, que acampavam na frente do Morumbi para conseguir ingressos para o show da Beyoncé – e que ouviam todo tipo de recriminação, como se fossem "um bando de desajustados e desocupados"; na vida privada, o documentário mostrava o oposto de qualquer estereótipo: todos ali trabalhavam, cumpriam horários rigorosos, eram bons filhos, bons amigos, bons vizinhos, tinham suas crenças, etc.
Só quem passou os últimos 500 anos dormindo pode imaginar que os grupos sociais perfilados em uma propaganda de banco sejam grupos privilegiados na fila de qualquer banco – ou mesmo de emprego. Uma análise simples sobre as estatísticas de quem morre e de quem ocupa os postos de comando no Brasil ajudaria a desconfiar das origens das nossas misérias para além da paranoia normalopata.
Parafraseando (e desvirtuando) um velho refrão, a vida é o que nos acontece enquanto estamos ocupados tentando ser normal.
O risco é chegar ao fim da vida e perceber que nos tornamos aquele personagem do Francisco Milani no programa "Viva o Gordo", que pedia ou dizia alguma coisa absurda e, diante do assombro dos ouvintes, perguntava, sempre alterado: "Tá me olhando por quê? Eu sou normal!". Ô se é.
*Em tempo: o pior é saber que a maior esperança desses caras para derrotar o mimimi e reconstituir a normalidade planetária é Donald Trump, o presidente dos EUA que precisou mover dinheiro e advogados por um acordo de confidencialidade com uma atriz pornô. A família tradicional agradece.
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