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Matheus Pichonelli

Não foi chamado de "comunista" em 2019? É bom se preocupar

Matheus Pichonelli

24/05/2019 04h00

A deputada estadual, Janaina Paschoal, acusada de "comunismo" por não endossar as manifestações em defesa de Bolsonaro, marcadas para o dia 26 de maio (Foto: Alesp)

"Esses traidores estão contra o Brasil e contra o 26/05", alerta a imagem que circula pelas redes. Entre os "traidores" estavam Janaína Paschoal, Kim Kataguiri, João Amoêdo e Joice Hasselmann. O que os unia era um espectro: o espectro da foice e do martelo.

O símbolo ali fazia tanto sentido quanto cair de costas e quebrar o nariz. Como no Brasil tudo é possível, o juízo pede para lembrar que entre os atacados da lista estava uma das autoras do pedido de impeachment contra Dilma Rousseff. Estava também o líder de um grupo supostamente liberal que já defendeu dar "um tiro na cabeça do PT".

Todos em algum momento da vida já demonstraram alergia a cores vermelhas ou atribuíram todos os males do país ao esquerdismo, ao feminismo, ao vitimismo ou a qualquer outro ismo em defesa das relações igualitárias.

O mesmo meme listava quem eram os verdadeiros patriotas do Brasil –dos seis destaques, meu raso conhecimento cultural só conseguiu reconhecer o Alexandre Frota e o Oscar Maroni. O primeiro dispensa apresentações. O segundo, para quem não teve a honra, vale procurar no Google as palavras "Bahamas + exploração + sexual".

Até o fechamento deste post, havia rumores de que a lista dos traidores havia sido engrossada também por Danilo Gentili e Lobão –o primeiro parece que está no muro sobre as manifestações de domingo em defesa de Jair Bolsonaro. Do segundo não puder checar as razões. Ele me bloqueou no Twitter.

O racha mostra que, no reino bolsonarista, os anticomunistas são todos iguais, mas uns são mais iguais que outros.

Até pouco tempo (mais precisamente o segundo turno de 2018), todos eles marcharam juntos e deram apoio a um candidato a presidente que prometia limpar o esquerdismo do léxico nacional. Quem acreditou que esse era um problema do país acreditou também que o problema não era com ele.

Quase cinco meses depois da posse, o espectro do comunismo parece ter se alastrado até entre os ex-aliados. Resquícios de 519 anos de doutrinação.

A reação indiscriminada fez com que um país inteiro se transformasse em uma espécie de Itaguaí ideológica, aquela cidade fictícia do conto "O Alienista", de Machado de Assis, onde um médico obcecado pela "normalidade" resolve encarcerar todo mundo no manicômio. Do lado de fora fica apenas o presidente, digo, o doutor.

Fora da ficção, o anticomunismo do bolsonarismo-raiz fez com que a deputada Janaína Paschoal viesse a público se defender das acusações e ameaças que vem sofrendo. 

Seu pecado? Sair do grupo de WhatsApp de seu partido, o PSL, e denunciar a "cegueira" de seus colegas com o Grande Líder.

O selo de comunista, segundo ela, não é só injustiça. É ignorância. "Se os bolsonaristas lessem, se estudassem, se se preocupassem em entender como os outros (inclusive os oposicionistas) pensam, eu não precisaria estar escrevendo o óbvio", escreveu a deputada no Twitter.

Quem também entrou na lista de "traidores" por se opor à marcha bolsonarista é o agora deputado federal Kim Kataguiri, para quem a iniciativa tem um "tom autoritário, de fechamento de Congresso e Supremo" e cujo mote principal é "nós apoiamos Bolsonaro e tudo o que ele fizer, incondicionalmente".

Por causa da malcriação, foi chamado de "Kim Katapiroca" por Olavo de Carvalho, guru de Bolsonaro e seus filhos.

Na grande quinta série que virou o Brasil, não é preciso defender o fim das classes sociais e a tomada dos meios de produção para ganhar o selo de comunista.

Não é necessário sequer desejar em voz alta um mundo um pouco mais justo, ou dizer perversidades do tipo "os brasileiros têm direito a uma aposentadoria digna", "a escola é direito de todos", "eu defendo a universidade pública", "todos devem ter oportunidades iguais", "é preciso combater todas as formas de opressão e preconceito".

Basta se negar a fazer o que seu mestre mandar.

Se você não foi chamado de comunista na última semana, é bom procurar o seu médico. Ou tenha paciência: a sua hora vai chegar.

Caso você já tenha passado por isso, mesmo sem jamais ter chegado perto de O Capital, você não está só, mas em companhia dos antigos ícones do jovem movimento conservador nacional.

A boa notícia é que no mesmo balaio de "inimigos da pátria" está também comunistas da velha guarda como Chico Buarque, que acaba de levar o Prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa.

Quem disse que Bolsonaro não ia unir o país?

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.