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Matheus Pichonelli

Você está numa relação abusiva e não percebe? O Brasil também

Matheus Pichonelli

01/07/2019 04h00

Foto: Getty Images

Não é fácil identificar uma relação abusiva –principalmente quando se está em uma. No começo, tudo parece perfeito: a pessoa amada está acima de todas, e só Deus está acima de tudo. O amor é cantado em prosa, verso, hino e nas cores da bandeira. Para proteger aquele amor, o "conje" é capaz de tudo, até de comprar as maiores brigas.

Aos poucos, o alegado excesso de amor ("é para o seu bem!") serve como justificativa para controlar as decisões, como ditar o que vestir, com quem andar, para onde ir, o que ler, o que assistir.

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A vítima da relação abusiva, quando vê, está afastada de amigos e vizinhos e de tudo o que não reconhece aquele amor obsessivo como único, verdadeiro, patriótico, puro.

Nas primeiras crises, começam a aparecer as primeiras chantagens ("antes de mim você estava em um cativeiro, eu te libertei, sem mim você se quebra, é ingovernável, disfuncional"). E as primeiras ofensas ("você é imbecil, é idiota útil, não sabe quanto é sete vezes oito nem a fórmula da água").

A relação passa a ser, então, mediada pelo medo ("ninguém é perfeito, eu erro também, mas você queria que nossa casa fosse a Venezuela?").

Com o tempo, passa a ser natural identificar a universidade, os estudos e o trabalho intelectual que a pessoa sonhava em acessar como barreiras para o relacionamento. É preciso se dedicar a outras tarefas, a deixar a baderna de lado e cuidar das questões domésticas. O controle financeiro passa a ser total, e créditos e orçamentos contingenciados só são liberados quando as vontades são atendidas.

Pessoas próximas começam a alertar. "Olha como ele tratou outras mulheres, olha como fala dos colegas". Em vão.

Os alertas são classificados como tentativa de destruir aquela relação.

Chega a um ponto em que os absurdos ficam naturalizados.

A arma sob a cômoda é argumento dissuasivo.

E a vítima começa a acreditar que foi só uma vez, não foi por mal, a ofensa não foi de coração nem vai acontecer de novo, as coisas vão mudar.

E, de repente, ninguém mais estranha sentar à mesa com 42 agrotóxicos ou ver parte de suas coisas serem vendidas a amigos interesseiros; nem colocar a família em risco dirigindo em alta velocidade, chamando de frescura a cadeirinha da criança que não quer comprar, ou a defesa ferrenha dos parentes que falam e cometem todo tipo de barbaridade em seu nome, como se fossem os donos da bola, da rua, das contas do Twitter e da Esplanada.

Passa a ser normal, inclusive, aquela conversa indevida flagrada com quem não se deve manter contato por celular –e parece razoável supor que uma pessoa de família, assim, seja vítima apenas da ação de hackers.

Os absurdos não se instalam nas casas das melhores famílias do dia para a noite. São aceitos aos poucos, em momentos de escuridão e desespero.

O Brasil está em um caso clássico de relação abusiva, e quem está fora se assusta quando o encontra tão alterado em fóruns como o G20. Demonstram preocupação, como fez a primeira-ministra alemã, Angela Merkel, com a forma como o país tem lidado com questões como meio ambiente e direitos humanos.

São justamente essas questões que vão condicionar o sucesso de pactos comerciais celebrados aos quatro ventos. Vamos respeitar? Ou seguir fazendo bico, dizendo que só nós, e mais ninguém, podemos dar conselhos sobre questões como sustentabilidade, e não o contrário?

Até aqui, a lista de amigos que deram um toque inclui gente como a Madonna, a Cher, o Bono Vox, o Roger Waters, o papa Francisco, a The Economist, o The New York Times, o prefeito de Nova York, as embaixadas da França e da Alemanha.

Os toques são prontamente rechaçados porque, afinal, ninguém vive nossa realidade e em briga de marido e mulher, ninguém põe a colher –mesmo que o prato esteja repleto de nutrientes tóxicos.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.