O mundo está chato: 'Garota de Ipanema' seria mesmo execrada hoje?
"Olha como está a situação, 'Garota de Ipanema' seria execrada hoje. Tá muito louco isso, tá muito exagerado. A gente pisa em ovos. Tô achando muito chato", disse o cantor Toquinho, autor de ao menos duas de minhas canções favoritas, em entrevista à coluna Mônica Bergamo, da Folha.
Leio a declaração em um banco do parque longe da praia, onde três garotas dividem o campo de futebol de terra com três rapazes, formando dois times mistos. Uma semana antes, o jogo era só delas, e eram cinco para cada lado. Uma cena incomum até a Copa do Mundo, no mês passado.
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Além do celular, por onde leio a entrevista, levo comigo até a praça um livro antigo com as cem melhores crônicas brasileiras de todos os tempos. Observo os nomes da coletânea e reparo que só cinco mulheres estão entre os cânones: Rachel de Queiroz, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Danuza Leão e Martha Medeiros.
Abro aleatoriamente numa página em que Fernando Sabino, outro ídolo, dedica metade de uma crônica para lembrar do dia em que concedeu uma entrevista a uma jovem repórter do Rio que chamava Gabriel Garcia Marquez de "marquês" e confundia Pablo Neruda com Dom Quixote; na outra metade, ele descrevia "uma estudante de seus dezoito anos", com "pele da cor de sorvete de chocolate, daquele mais claro, mas não tão fria" e com "competência para passar no vestibular do que quisesse, no que dependesse da apresentação física".
Em outra crônica, também aberta aleatoriamente, leio Ivan Lessa dizer que "estrangeiro é o bairro onde moramos" e "estrangeira é a mulher que encoxamos no elevador".
Mostro o trecho para a Camila, minha esposa0; ela devolve o livro com uma expressão parecida com o dia em que viu o marido chegar em casa, besta e animado, com uma camiseta povoada com o rosto de alguns dos meus maiores ídolos do cinema — parte deles encrencados com casos de assédio ou histórico de relacionamento abusivo, duas palavras que não caberiam nas crônicas consagradas do século 20, o século em que nasci.
Fecho o livro e decido pesquisar a história da Garota de Ipanema. Caio no site da própria Helô Pinheiro, a musa de Vinicius de Moraes e Tom Jobim. No site, ela conta que eles estavam sentados em uma mesa do antigo Bar Veloso – hoje chamado Garota de Ipanema – tomando cerveja quando a viram passar e decidiram mudar a história da música popular brasileira. Ela tinha 17 anos.
"Para ela fizemos, com todo respeito e mudo encantamento, o samba que a colocou nas manchetes do mundo inteiro e fez da nossa querida Ipanema uma palavra mágica para os ouvintes estrangeiros", escreveu o Poetinha em 1965. "Ela foi e é para nós o paradigma do broto carioca; a moça dourada, misto de flor e sereia, cheia de luz e de graça mas cuja visão é triste, pois carrega consigo, a caminho do mar, o sentimento da mocidade que passa, da beleza que não é só nossa – é um dom da vida em seu lindo e melancólico fluir e refluir constante."
Não se pode dizer que o autor teve o mesmo mudo encantamento por Leonor, personagem do texto que emplacou no livro das melhores crônicas. Leonor era uma criança negra que exercia uma função que o cronista considerava básica e "pela qual lhe pagava quatrocentos réis, dos grandes, de cada vez: coçar-me as costas e os pés".
Volto à entrevista com o Toquinho. "O Vinicius pagou caro por esses nove casamentos. Imagina que terrível passar por oito separações? Mudar de casa, de tudo. Ele teve cinco filhos de três mulheres diferentes."
No campo de terra, meninos e meninas seguiam brigando pela bola num campo já destruído pelos calcanhares e joelhos igualmente ralados.
Fico em dúvida se, no intervalo da peleja, alguém ali execraria uma canção como "Garota de Ipanema" e sua metáfora sobre o fim da juventude. Possivelmente não vissem sentido na letra. Mas execrar?
Ou então até vissem sentido, desde que elas também pudessem (como, aliás, podem) falar de seus garotos de Ipanema, que provavelmente passariam longe das barrigas parrudas e camisas entreabertas dos frequentadores de bar. O garoto de Ipanema, em 2019, estaria mais para Lazaro Ramos ou Rodrigo Hilbert. A garota está mais para Anitta, dona do próprio nariz.
O mais provável é que, tantos anos depois, talvez, e só talvez, as perspectivas tenham mudado: alguém poderia ouvir a mesma música ou ler a mesma entrevista e reconhecer não só a dor do homem que sai de casa apaixonado, mas também das oito mulheres que ficaram, três delas sozinhas, com os filhos.
Essas novas perspectivas envolvem outras ambições além de ornar vistas cansadas em busca da beleza fundamental. Ou alguém prefere ser tema de música a cantar, escrever – ter uma história, enfim, narrada e cantada por si?
Não é que, nós, homens, ficamos mais legais, mais desconstruídos, mais sensíveis com o tempo. É que as coisas mudaram, e isso não é o fim da inocência.
Se, em 1960, em torno de 16% das mulheres compunham a chamada população economicamente ativa, nos anos 2010, essa década chatérrima, a porcentagem atinge quase 50%, com viés de alta. Além disso, desde 2014, as mulheres são maioria entre os doutores brasileiros titulados no exterior — mais de 60%, segundo o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE).
Gostando ou não, reconhecendo o lugar dos cânones ou não, sabe o que aconteceria se minhas referências, gracejos ou gracinhas fossem uma réplica baseada apenas na música e na literatura consagrada do século passado? Seria certamente enquadrado e dispensado (com toda razão) pelas minhas editoras, que comandam os espaços desta e de outras crônicas entre tantos blogs e colunas. Algumas delas certamente estariam hoje em qualquer coletânea de grandes cronistas contemporâneas.
O jogo, como na praça perto de casa, parece que virou. O resto é história. Ou lamento.
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