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Matheus Pichonelli

Apagão nas bolsas de pesquisa é um passo largo até o abismo

Matheus Pichonelli

05/09/2019 04h00

Pesquisadores fazem o sequenciamento do genoma do vírus Zika. Reprodução/TV Brasil

Tem sido doído acompanhar, pelas redes sociais, os relatos dos pesquisadores amigos e conhecidos afetados diretamente pelo corte de mais 5.613 bolsas de pós-graduação que seriam ofertadas pela Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) a partir deste mês. No primeiro semestre, outras 6.198 bolsas já haviam sido bloqueadas até o fim deste ano. A previsão é que o governo "economize" R$ 38 milhões com as medidas.

É como se alguém apagasse, uma a uma, as luzes que servem para iluminar os caminhos tomados por abismos coletivos e particulares. Sem a iluminação necessária, vale dizer, cairemos todos.

Seria cômico, não fosse trágico, que a ciência no Brasil corra o risco de ir para o espaço na gestão de um astronauta, que agora faz ginástica para salvar, ao menos até dezembro, as bolsas de pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Não é preciso ir para a Lua para perceber o quanto precisamos de bons cientistas e pesquisadores no país. Basta andar a pé pelo centro de qualquer cidade e confirmar, na expressão dos rostos com os quais cruzamos todos os dias, o agudo estado de apatia, quase loucura, dos tempos atuais.

Poucos parecem capazes de esconder não uma preocupação, mas uma angústia, uma ausência de sentido, uma incompreensão, de si, do mundo, dos rumos nas grandes cidades, onde todos os caminhos da salvação levam ao bar ou aos falsos profetas.

Um dinossauro chamado contemporaneidade

Como em outros momentos da história, estamos sequestrados por um ritmo que nossos corpos não estão preparados para gerenciar. Passamos parte do dia em trabalhos mecanizados, repetitivos, depois de passar horas no trânsito, entre ruídos, buzinas, gritos de socorro, pedidos de ajuda e promessas de salvação impressos nos postes e nos muros.

Andamos cansados demais para pensar e, sem pensar, ficamos sem entender como um dinossauro chamado contemporaneidade foi se sentar na nossa mesa sem que ninguém saiba o que fazer com ele.

O mundo está diante de impasses definitivos. Afinal, como vamos enfrentar a automação do trabalho? Como lidar com tanta informação? Como será a indústria 4.0? E a era da internet 5G? Como nos deslocar em cidades onde nem as águas têm para onde correr? Como expandir sem destruir? Como garantir ar puro? Como envelhecer? Como enfrentar a longevidade?

Tantas dúvidas coletivas se sobrepõem às angústias particulares, às dores físicas e às existenciais; nossas contradições, nossa incapacidade de nos relacionar sem produzir toxinas e mais sofrimento, nossas altas taxas de suicídio e automutilação. Nossa violência, provavelmente a grande esfinge a ser encarada e decifrada.

Nosso desespero, moda também em 2019, é movido pela sensação humana de ser ver como máquinas prestes a parar e/ou serem substituídas por outras máquinas. É ver outras máquinas trabalharem sobre o apagamento de nossas memórias, hábitos, formas consagradas de produzir conhecimento, vínculos sociais e compreensão.

Erramos ao imaginar que tempo e dinheiro para pesquisa são luxos

É preciso sair dessa engrenagem e olhar a máquina, seus ritmos produtivos e reprodutivos com distanciamento, para desenhar ao menos o rascunho das respostas para não sermos engolidos por tantas dúvidas e promessas fraudulentas de certeza. É preciso também mergulhar, observar com lupas os pormenores desse corpo social, cujos poros, linhas e erupções não são visíveis a olho nu nem ao ritmo da vida convencional.

Isso significa que precisamos decifrar as novas doenças e transtornos, antever suas erupções, repensar nosso modelo de geração de riqueza, nossos gargalos democráticos, nossa incapacidade de evitar desastres, epidemias, destruição de barragens e abolir nossos chicotes em pleno 2019.

No Brasil, erramos ao imaginar que tempo e dinheiro para pesquisa são luxos, uma busca pela glória acadêmica individual. É exatamente o contrário: é justamente pelo olhar de quem se abre e se dedica a buscar no passado, nas letras, nas fórmulas ainda a serem testadas, no material genético, na lâmina do laboratório, na fala dos entrevistados sem voz ou dos cânones que podemos escancarar as janelas do futuro, hoje incompreensíveis e trancafiadas por quem foi engolido pelo ritmo da sobrevivência.

O corte das bolsas é o corte do tempo para dedicação às causas urgentes que a urgência dos dias impede de identificar, enfrentar, solucionar –seja na engenharia, na biologia ou nas ciências humanas.

Em um mundo que chama de "mamata" benefícios como esses e separa o mundo entre seres produtivos e "baderneiros", desprezando cientistas e educadores, a chance de alguém descobrir a cura do câncer pode ser desperdiçada no turno extra de quem chegou cansado (a) demais do trabalho aos domingos para salvar qualquer projeto que não a si.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.