Bolsonaro queria um "príncipe" como vice. Saudosos da monarquia agradecem
Jair Bolsonaro está arrependido.
Na reunião em que selou a sua saída do PSL, partido pelo qual foi eleito presidente, ele disse ao deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança que era ele, e não o general Mourão, quem deveria ser o candidato a vice em sua chapa. Segundo a jornalista Mônica Bergamo, o arrependimento foi externado na frente de todos os parlamentares presentes ao encontro.
"Príncipe, estou te devendo eternamente", disse Bolsonaro ao "herdeiro" da família real, que recentemente afirmou na tribuna que a escravidão era "quase um aspecto da natureza humana".
A história me lembrou um episódio ocorrido tempos atrás, quando trabalhava em um instituto de cultura em Campinas e uma visitante cruzou o salão de entrada com uma sugestão: por que não convidávamos algum herdeiro da família real para uma palestra?
Por alguma razão, a visitante estava convicta de que aquele espaço, onde eram gravados debates com psicanalistas, filósofos, cientistas e escritores, era o local ideal para dar início a um movimento de retomada da monarquia no país.
"O Brasil só vai ter jeito quando for governado por um rei", dizia ela.
As ideias dos herdeiros do trono, fomos ver depois, eram realmente ótimas. Ótimas para quem vivia ao redor da Quinta da Boa Vista, no Rio, nos tempos do Império.
No mundo contemporâneo –conectado, diverso, compartilhado, democratizado, inspirado e desafiado pela economia criativa, pela indústria 4.0, pelos debates urgentes sobre gerenciamento de dados–, aquelas ideias pareciam uma piada pronta. Mas para quem?
O que aquela pessoa queria não era um debate. Era a figura de um soberano protetor. Alguém que resgatasse de algum lugar inexistente uma ordem que nunca funcionou em tempo algum.
Não era a única.
Era (é?) o tempo do rei
Aquela conversa me fez desconfiar de que os passados, assim mesmo, no plural, podem coabitar no mesmo tempo e espaço. Não sem conflitos.
Porque se existe algo que realmente nos une neste mundo é a dessincronização dos relógios particulares –e desta vez não estou falando do horário de verão.
No auge do modernismo, Mussolini se inspirava na Roma Antiga para moldar os signos, valores, gestos e rituais de um novo movimento conhecido como fascismo.
E Stálin chegou a encomendar ao famoso cineasta Serguei Eisenstein um filme sobre "Ivan, o Terrível", tirano que inaugurou a era dos czares na Rússia, para ver a si mesmo na tela de cinema.
O mundo hoje convive com quem vive ainda em um tempo anterior ao das navegações, quando se atribuía os perigos das viagens ao temor de cair no vazio em uma das pontas de uma terra plana.
Tem os que, como Juliano Cazarré, veem nos gorilas um modelo contemporâneo de vigor paterno e familiar.
Tem os que operam no período medieval, quando a Bíblia regulava nossos corpos, nossas vidas, nosso ensino, nossas leis, e não só a nossa fé.
Tem os que, como na Idade Média, vivem em uma cruzada religiosa e cultural.
Há quem viva como o personagem do filme "Adeus, Lênin", num medo constante de alguém perceber que o Muro de Berlim caiu há exatos 30 anos, e tenta recriar os signos de um mundo bipolarizado para não precisar sair dele.
Há quem frequente estádio como se desfilasse numa arena do Brasil Colônia com carta-branca para ofender e "colocar no lugar" quem teve a subjetividade reduzida a uma posse durante a escravidão.
Há quem, com medo dos bárbaros contemporâneos (o refugiado, o "globalismo", o conhecimento do estrangeiro), busque proteção nos feudos do nacionalismo e ofereça vassalagem em troca de suserania.
E há quem, no vácuo do pavor do desamparo, confunda o voto para concessão de um mandato de quatro anos com o poder divino de falar pelos povos, governar como um monarca e dividir as decisões apenas com os herdeiros da família real –sem opositores, sem imprensa livre, sem transparência, como em regimes não tão distantes.
No começo do ano, uma reportagem da BBC Brasil mostrou como as ideias monarquistas encontraram terreno fértil para renascer no bolsonarismo. É uma espécie de pororoca entre o atraso e o pensamento colonial.
A proclamação da República –evento nomeado como golpe na página do movimento monarquista– completa 130 anos nesta sexta-feira, 15 de novembro.
Hoje, o líder do governo acredita que todo mundo, principalmente as mulheres, sonha em passar uma tarde com um príncipe.
"Príncipe" e "princesas" também são alegorias recorrentes no vocabulário da ministra Damares Alves (Mulheres e Direitos Humanos).
Por onde se anda, não é difícil esbarrar em cabeças presas a universos supostamente enterrados que ainda povoam imaginários, orientam afetos, reproduzem valores e naturalizam violências.
Difícil é sincronizar os relógios com os desafios do próprio tempo. O nosso é um campo minado pelos entulhos do passado.
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