“A Vida Invisível” é a história de um país de desencontros
O que vem à cabeça quando você pensa no Brasil dos anos 1950?
A construção de Brasília? A final da Copa do Mundo no Maracanã? A bossa nova de Tom, Vinícius e João Gilberto? O "Grande Sertão: Veredas", talvez nossa obra maior, de Guimarães Rosa?
Todos esses marcos, nascidos das cabeças, mãos e pés de alguns dos grandes gênios brasileiros, têm um denominador comum: são parte da nossa história visível.
Uma história escrita e protagonizada, quase sempre, por homens.
As histórias não contadas ficaram em casa e se tornaram invisíveis com o tempo.
No prefácio de "A Vida Invisível de Eurídice Gusmão", livro que inspira o filme que entra em cartaz nesta quinta-feira, dia 21, a escritora Martha Batalha conta que as duas protagonistas de sua história, as irmãs Eurídice e Guida, ainda podem ser vistas por aí.
"Aparecem nas festas de Natal, onde passam a maior parte do tempo sentadas, com o guardanapinho nas mãos. São as primeiras a chegar e as últimas a ir embora. Comentam sobre os temperos dos bolinhos de bacalhau, sobre os calores ou chuvas do dia, sobre o vinho que algumas tomam, mas não muito, não muito. Perguntam se o marido vai bem, se a sobrinha-neta já tem namorado, se o sobrinho-neto está encaminhado."
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Eurídice e Guida, define a autora, foram baseadas na vida de nossas avós, que no Natal "olham os jovens abrindo os presentes, com um jeito de quem só consegue ver o passado".
Essa história de talentos e desejos enclausurados e invisível ganhou o primeiro plano no filme de Karim Aïnouz. A exemplo do visceral "Bacurau", de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, o filme foi aplaudido em Cannes e ganhou a pré-indicação do Brasil na disputa pelo Oscar em língua estrangeira do ano que vem.
É no resgate das histórias não contadas que reside a força do filme. São histórias de um país em permanente desencontro, e não só no sentido alegórico.
No filme, Guida (Julia Stockler) se apaixona por um marinheiro grego, com quem viaja pelo mundo sem pedir a bênção dos pais. Volta para casa, grávida, sozinha e arrependida, e recebe do pai, que a expulsa do lar, a segunda paulada em sua história.
Eurídice, que não presencia o episódio, passa a vida tentando descobrir o paradeiro da irmã, que imagina estar pelo mundo, mas as informações lhe são negadas ao longo de boa parte da vida.
São os homens da história quem têm o controle da narrativa e, portanto, do destino, como lembrou a atriz Carol Duarte, a Eurídice do filme, em entrevista ao blog: enquanto a solidariedade feminina é boicotada, a masculina é orgânica.
Os homens da trama, por sua vez, se ajudam o tempo todo. Inclusive no zelo a segredos, os que deviam ser guardados e os que precisavam ser revelados.
Guida é a personagem que entendeu desde cedo seus desejos e foi punida por isso.
Eurídice era brilhante em tudo o que fazia –no filme, tinha tudo para brilhar como pianista e, no livro, acumulava proezas não reconhecidas sequer dentro de casa, comandada pelo marido (Gregorio Duvivier), um chefe de família mediano em tudo o que faz e degusta. "Dá-me um bife", dizia ele, diante de um prato mais sofisticado.
Naquelas casas habitadas por quem não conhecemos as histórias, não há nada se não desencontro. Da personagem com sua irmã. Dos personagens em matrimônio que ninguém sabe explicar como se deu. Da personagem consigo mesma, suas aptidões, seus talentos, seu passaporte para o mundo sequestrado em um modelo familiar que alimenta frustração, raiva e ressentimento –sentimentos que também não podiam ser externalizados, ou eram enquadrados como estado de loucura e descontrole. Ainda são.
O filme fala também das cidades que não se frequentam, que não se conhecem.
Não é preciso morrer ou se mudar para o outro lado do mundo para sair da órbita da família de classe média ascendente em uma cidade como o Rio; basta viver nos bairros operários, nos cortiços de paredes descascadas, fraturada pela distância entre brancos e pobres, colonizadores e antigos escravos.
"A Vida Invisível" é a história desses muitos países, dentro do mesmo país, criados para não convergir, mas que criam seus laços de afeto pelas dobras, pelas lacunas. Um país em permanente estado de desencontro.
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