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Matheus Pichonelli

Compaixão de Bolsonaro com vítimas do coronavírus é real como nota de 3

Matheus Pichonelli

20/04/2020 04h00

Jair Bolsonaro, durante visita ao Hospital de Campanha de Águas Lindas de Goiás. Foto: Marcos Corrêa/PR

Luiz Henrique Mandetta, maior inimigo de todos os tempos da última semana do governo Bolsonaro, acabava de ser alvejado quando o presidente concedeu uma entrevista para a CNN Brasil, na quinta-feira (16), para anunciar o substituto – não do Ministério da Saúde, que havia sido apresentado um pouco antes, mas da bronca oficial.

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No dia em que o país perdeu 188 vidas para o coronavírus (no total, são 2.462 mortos), Bolsonaro não fez questão de disfarçar que o foco das preocupações a partir de então era…a cadeira que ocupa.

Quem imaginava que, agora sem o ministro da Saúde incapaz de bater continências ao capitão, o governo estava livre para unir esforços contra a pandemia precisou engolir a expectativa ao ver que o inimigo agora é outro. E ele não é um vírus.

O novo maior inimigo de todos os tempos, ao menos até a próxima semana, é o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). "Parece que a intenção é me tirar do governo", disse Bolsonaro, chamando o Congresso para a briga.

Três dias depois, no domingo (19), ele virou atração principal de um ato que pedia a volta da ditadura e o fechamento do Congresso em frente ao Quartel General do Exército em Brasília. "Não queremos negociar nada", disse, para delírio da plateia que agora faz buzinaço em frente dos hospitais para protestar contra as medidas de contenção da pandemia.

Não foi o primeiro nem o último petardo de uma máquina de guerra que tenta atropelar tudo o que vê pela frente. Sob Bolsonaro, o Brasil instaurou o regime do presidencialismo da intimidação.

Em um ano de mandato, Bolsonaro enfileirou intrigas com ex-aliados como quem coleciona cabeças de animais empalhados na parede: Gustavo Bebianno (morto sem uma palavra de condolências oficiais), general Santos Cruz, Luciano Bivar, Joice Hasselmann, Alexandre Frota, Paulo Marinho, Delegado Waldir e grande elenco. Na mira estão ainda os 11 ministros do Supremo e os chefes do Congresso e dos governos estaduais.

A capacidade de pensar em si e criar novos antípodas num momento agudo da crise, quando estados à beira do colapso hospitalar esperam por socorro, enterra de vez a versão empática que o presidente levou à TV em um de seus últimos pronunciamentos, quando recorreu ao teleprompter para dizer que era, sim, capaz de sentir e se colocar "no lugar das pessoas" e entender "suas angústias".

Naquela versão ensaiada, Bolsonaro se mostrava preocupado com "o que acontecerá com essas pessoas que têm que trabalhar todos os dias e que têm que ganhar o pão de cada dia, todos os dias".

A preocupação repentina soou tão real quanto uma nota de 3.

Durante a crise, pressionado por empresários aliados que vociferam contra as medidas de isolamento, como se só aqui o coronavírus trouxesse prejuízos, Bolsonaro tem partido de um falso pressuposto para sabotar o único modelo de enfrentamento da pandemia que se mostrou eficaz, mundo afora, para salvar vidas. 

Esse falso pressuposto distingue erroneamente quem "quer" ou precisa trabalhar de quem não quer ou supostamente não precisa – querer ou não, nessas horas, não garante que a pessoa afetada pelas medidas esteja viva na semana seguinte caso infectada.

Difícil é explicar isso para quem vê a morte como plataforma, não como um problema, e foi eleito fazendo arminha com a mão.

O cálculo de Bolsonaro, que como deputado combatia o Bolsa Família e o "coitadismo" e como presidente da pandemia queria pagar R$ 200 de renda básica para quem mais precisa, é outro: "Se a economia afundar, acaba o meu governo".

Alguém que já ligou os pontos uma hora dessas conseguiu perceber a gravidade de usar pronome possessivo no momento em que a ordem é, ou deveria ser, salvar vidas.

Mas a crise não é um cavalo que anda sozinho pelo pasto da desgraça. É um terreno propício para o populismo pandêmico dos crentes que não sabem rezar (ou que decoraram, sem nunca colocar em prática, um único provérbio sobre a verdade que liberta), de demofóbicos que se fingem de patriotas, de sabotadores que se vestem de estadistas e de autômatos que dizem ter algum soluço de sentimento por qualquer um que não seja ele.

Às vezes todas essas características se reúnem em uma pessoa só. 

Fora dos textos decorados, Bolsonaro já deu inúmeras demonstrações de que o sofrimento alheio era motivo de regozijo, não de compaixão. É o que ele mostra quando debocha de vítimas de tortura, chama de "polêmica" sua opinião sobre uma vereadora metralhada ou quando diz preferir um filho morto em um acidente a um filho homossexual. A participação nas marchas do contágio pró-golpe é mais um capítulo de sua militância em defesa da morte. 

Cada ato ou declaração como essa, minimizada antes e durante a campanha, é um buraco de humanidade preenchido com o algodão das frases feitas agora apresentadas ao público. Por dentro existe um fã declarado de torturador, incapaz de sentir culpa, que monta barricada e vê inimigo, não gente, por onde passa. O resultado é o estado de guerra permanente movido pelo negacionismo, o anticientificismo e o irracionalismo que destroça a inteligência e a sensibilidade ao redor.

No filme "O Labirinto do Fauno", o diretor mexicano Guillermo Del Toro mostra as consequências deste embate quando um médico ligado a um capitão da ditadura Franco, na Espanha, se nega a compactuar com uma cena de tortura e aplica uma injeção na vítima supliciada para que ela deixe de sentir dor. A compaixão foi sua pena de morte.

Ao ser confrontado pelo chefe sádico, diz que fez tudo o que podia ter feito, enquanto tira os óculos para não ver sua própria condenação. 

O diálogo na sequência é avassalador:

– Não fez. Você poderia ter me obedecido.

– Poderia, mas não fiz. 

– Seria melhor pra você.

– É que obedecer por obedecer assim, sem pensar, é pra gente como você, capitão.

No Brasil real, a marcha pró-morte é o momento certo para ver claramente quem está do lado de quem.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.