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Matheus Pichonelli

Negacionistas e debochados: os canalhas mostram os dentes na pandemia

Matheus Pichonelli

23/04/2020 04h00

Foto: iStock

No dia em que correram pelo mundo as imagens das retroescavadeiras e dos caixões enfileirados em Manaus (AM), onde o sistema de saúde colapsou em meio à pandemia do coronavírus, um canalha foi à TV dizer que ainda existem muitos leitos de UTI a serem ocupados Brasil adentro e sugeriu que o maior problema neste momento não é a urgência do atendimento, mas o "clima de pandemia" e o "alarmante" número de contratos sem licitação assinados em caráter de emergência para compra de equipamentos médicos e produtos de proteção. Não deu um exemplo de onde isso esteja acontecendo.

Dias atrás, quando os EUA registravam mais de 2,5 mil mortes em decorrência do coronavírus (hoje são 45 mil), um canalha gravou um vídeo, entre risos, no sofá de casa, dizendo "e daí", lá morrem o dobro de pessoas vítimas de engasgamento e ninguém manda parar de comer por isso. Para o canalha, não é certo que as pessoas parem de viver por causa de uma doença de baixa letalidade com grupos de risco definidos e transmissão virtualmente impossível. "Seria como matar o boi para eliminar o carrapato", disse, canalhamente.

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Pelo Twitter, um canalha pediu cuidado antes de afirmar que a explosão de mortes no Brasil de um mês para cá era motivada pelo coronavírus. Muitas vítimas contabilizadas, afinal, já eram idosas, tinham outras doenças e iriam morrer de qualquer jeito, deu a entender o canalha. Só faltou compartilhar, como uma certa deputada canalha, a história do primo que morreu estourando pneu do carro e foi diagnosticado com o vírus, para choque da família.

Outro canalha escreveu em seu blog que o grande problema da pandemia não eram as 180 mil mortes contabilizadas até agora no mundo, mas um "projeto globalista" que já usava o climatismo, a ideologia de gênero, o politicamente correto, o imigracionismo, o racialismo, o antinacionalismo e o cientificismo e agora se aproveita da comoção mundial para sequestrar o conceito de solidariedade e abrir caminhos para um sistema comunista. Vai usar espantalho para alimentar urubu assim lá na casa do canalha.

O canalha faz escola. Outro dia mesmo um seguidor obediente, notadamente canalha, sugeriu a criação de aplicativos que possam localizar, caçar, prender, linchar virtualmente e publicar os endereços de quem promove o comunismo. Na balaio, ensina a história, cabe um pouco de tudo.

A doença já produzia pilhas de mortos mundo afora quando outro canalha pediu para os fiéis não se preocuparem: quem trabalha com o medo é Satanás e quando as pessoas ficam apavoradas, em dúvidas, ficam fracas e suscetível a qualquer ventinho. Canalha.

Outro canalha, que se negava a fechar a própria igreja e salvar seus seguidores da pandemia, foi às redes insinuar que o coronavírus tinha virado uma desculpa para as pessoas ficarem em casa sem trabalhar. 

No Tik Tok, uma canalha com roupão de seda gravou um vídeo sugerindo que quem prioriza a vida e não quer trabalhar nem fazer a economia girar tenha as casas e os corpos marcados de vermelho e seja impedido de ter acesso a médico, farmácia, supermercado ou contato com o porteiro. A canalha acredita que, assim, toda alimentação produzida pode ser direcionada para as pessoas que estão produzindo. Como ninguém pensou nisso antes?

Na verdade, já pensou.

Vejo essas manifestações e a imagem dos caixões me impede de concluir que essas pessoas são ignorantes, incapazes de ver o óbvio ou estão malucas, fora de si. Seria uma ofensa a quem de fato sofre com distúrbios.

Em comum, todas essas pessoas mastigam e racionalizam diariamente o apoio a uma plataforma política que, um dia vamos saber, decidiu combater uma pandemia mundial com provocações, mentiras, achaques, negacionismos e janelas para o autoritarismo. Talvez porque seus idealizadores sintam tesão com o cheiro de napalm pela manhã. Talvez.

A defesa apaixonada da plataforma mortífera vem dos mesmos canalhas que outro dia mesmo minimizavam apologia à tortura. São chamados agora de "verdadeiros brasileiros" por desdenhar o risco de contágio e se aglomerar para pedir o fim da democracia, com direito a caixões alegóricos, festivos, e pedidos de intervenção.

Esses canalhas não nasceram hoje.

São herdeiros orgulhosos dos canalhas que sempre evocaram os riscos econômicos (aos próprios negócios, claro) no último país do mundo a abolir a escravidão, em 1888.

Que sorriam quando a ordem era perseguir, silenciar e desaparecer com opositores na ditadura.

E que fariam os maiores monstros do século passado sorrirem comovidos ao ver que ainda circulam pelos anos 2010 ideias de marcar inimigos que primeiro foram discriminados pelo discurso, depois proibidos de acessar serviços básicos, em seguida foram separados entre quem podia ou não produzir e, por fim, embarcaram em peso para os campos onde as placas avisavam que só o trabalho liberta. Foram seis milhões de mortos, mas hoje muita gente correria para dizer que eles já estavam doentes ou com idade avançada quando chegaram aos campos.

Antes, como agora, o negacionismo já se coloca a serviço do apagamento, mesmo quando as imagens das vítimas gritam.

Há quem prefira não ver. Dizer que não viu. Furar os olhos de quem vê. 

É porque canalhas não sentem remorso. Canalhas não sentem. Canalhas.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.