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Matheus Pichonelli

O que explica a Tubaína de Bolsonaro no pior momento da pandemia?

Matheus Pichonelli

21/05/2020 04h00

Bolsonaro faz piada sobre cloroquina durante entrevista por videoconferência

No dia em que o Brasil superou, pela primeira vez, a marca de 1.000 mortos em 24 horas pelo coronavírus, Jair Bolsonaro apareceu sorridente, em uma videoconferência, fazendo piada com a cloroquina, o seu emplastro Brás Cubas.

Sem querer politizar o uso do medicamento, mas já politizando, o presidente até admitiu que tudo pode não passar de efeito placebo, mas que ficará com a consciência tranquila por ter tentado e apostado nos efeitos milagrosos da sua solução. Na dúvida, sentenciou o presidente, quem é de direita toma cloroquina; e quem é de esquerda toma (suspense! Vem palavrão aí?)…Tubaína…

Os risos ecoaram no recinto. Estão ecoando até agora.

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Não sei vocês, mas acho que nessas horas as ferramentas de análises psicopatológicas deveriam ser itens de primeira necessidade à mesa do brasileiro. Mais do que qualquer exame, todos deveriam saber o que se passa na cabeça do presidente. Sem elas, ninguém sabe até onde ele é capaz de ir.

Arrisco dizer que a risada ao fim da piada do pavê era um crime confesso de indiferença com os mortos na pandemia. Dessa vez, sem nem trazer no bojo o seu já consagrado "e daí?". Mas não só. Quem assiste ao vídeo com atenção percebe que não havia ali apenas indiferença. Nem só uma tentativa de suspender o peso da realidade com uma concessão ao alívio cômico. 

Tinha algo de regozijo. Uma certa alegria indisfarçada. Como se as mortes fossem solução, não o problema em si.

A desconfiança ganha corpo se alguém lembrar que o símbolo da trajetória de Bolsonaro até a rampa do Palácio do Planalto era uma arma, desenhada num gesto entre o polegar e o indicador que podia ser ensinado para crianças em campanha.

Flauta de Hamelin

Hoje, diante dos esforços para achatar a curva de contaminação pelas vias do isolamento, Bolsonaro quer que as pessoas saiam de casa. É um desejo quase obsessivo.

O polegar e o indicador ao alto são a sua flauta de Hamelin, a cidade medieval da Alemanha infestada pelos ratos no conto dos irmãos Grimm. Na versão à brasileira da história, as notas musicais anti-epidemia são compostas com cloroquina e a peste é combatida pela perversão dos que transformam as vítimas da solução final em roedores. 

O condutor da flauta tem um sorriso incontido dizendo "saiam, sejam homens, não covardes". Despreza, inclusive, os riscos cardíacos de um medicamento sem eficácia comprovada.

Os ratos somos nós.

E alguns de nós já fomos metamorfoseados antes em pestes responsáveis por enlamear cidades, corroer orçamentos e infestar os tetos das caixas previdenciárias gerenciadas pelos cidadãos de bem com histórico de atleta.

A doença redentora só mataria velhos e pessoas doentes, lembra? Os pesos de um sistema deficitário, lembra? E ninguém merece carregar o peso de um cemitério nas costas, como ensinou a agora ex-secretária da Cultura Regina Duarte. Lembra?

Inevitável tentação

Em uma reportagem recente, meu amigo Felipe Bächtold e a repórter Daniela Arcanjo ouviram psicanalistas para tentar entender a personalidade do presidente. Lógica paranoica, messiânica e delirante, demonstrações de fragilidade e onipotência foram alguns dos elementos observados pelos especialistas a partir dos discursos do capitão. Mas os próprios especialistas ressalvam: feitas à distância, as observações servem como pistas, não como um diagnóstico.

Seguimos, então, sem saber o que aconteceu na infância do pequeno capitão que martela hoje como um trauma coletivo.

A palavra psicopatia, grifo meu, surge inevitável, mas também como tentação. Na reportagem citada, o professor da Escola de Administração da FGV (Fundação Getulio Vargas) Marcelo Galletti Ferretti já alertava que classificar o presidente como alguém psicopatologicamente acometido pode desresponsabilizá-lo por suas atitudes, como a de estimular a população a sair de casa em meio a uma pandemia. "O impulso de colocar na conta da loucura as idiossincrasias dele tira a discussão do campo político para o campo psicopatológico."

Pois no campo político tudo é óbvio demais até para ser desenhado.

No dia em que 1.179 famílias choraram seus mortos na pandemia, Bolsonaro conseguiu botar a Tubaína no centro da conversa. Entre risos, o flautista macabro convoca os habitantes da toca a sair para a rua e esquecer por instantes que no pico da pandemia o país não tem sequer ministro da Saúde há quase uma semana.

No conto dos irmãos Grimm, só quem se salva do abismo é quem não ouve a canção mágica. Isso é uma dica, não um spoiler. 

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.