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Matheus Pichonelli

Ação da PF dá o mapa para boicotarmos quem patrocina o ódio

Matheus Pichonelli

28/05/2020 04h00

Foto: iStock

A Operação da Polícia Federal que cumpriu, nesta quarta-feira (27), mandados de busca e apreensão contra empresários, políticos, youtubers e ativistas bolsonaristas escancarou as roldanas de gabinetes e discursos de ódio e notícias falsas que infestam as redes, o debate público e a segurança sanitária.

Todo mundo sabia ou desconfiava que tanto ódio não brotava do nada. Era sistematicamente plantado, cultivado, disseminado e financiado com o suposto apoio de empresários e ajuda de dinheiro público.

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Quem acredita que essa rede é inofensiva ou está só no campo das ideias deveria assistir ao vídeo da reunião ministerial do dia 22 de abril. Principalmente no momento em que Jair Bolsonaro manifesta o desejo de armar a população para revidar à bala as orientações de prefeitos e governadores que contrariem sua vontade imperial.

Ao todo, a PF cumpriu mandados em 29 endereços. O mapa, ampliado pelos conhecidos de sempre que ainda apoiam e sustentam essa loucura, servirá como roteiro do que cada cidadão minimamente são deve fazer a partir de agora se quiser ver a fonte de tanto ódio contida no nascedouro. 

Quem replica esse ódio serve como correia de transmissão. E ela precisa ser cortada. Para isso é preciso deixar de seguir, denunciar, alertar anunciantes sobre os horrores às quais sua marca está sendo associada, como tem feito o perfil anônimo Sleeping Giants.

A lógica atualizada do autoritarismo à brasileira, que tem base no escravismo e passa pelas ditaduras do século 20, está incubada em atos, palavras e omissões de todo mundo que quer, a essa altura do campeonato, dizimar as divergências em torno de um projeto autocrático no qual sobreviver requer obediência. Nem que seja na bala.

Mais do que qualquer outro momento, a pandemia serviu para mostrar quem está do lado de quem. Pois a minha companhia ninguém que normaliza o que está acontecendo terá. Espero que a dos amigos que sobrevivem a estes tempos com algum grau de dignidade também.

O que o fascismo pede é enfrentamento. Nem que seja pelo boicote onde mais dói: o bolso.

Meu filho de 6 anos é pequeno demais para entender certas nuances, mas já sabe que não, não vamos mais parar na estrada para comprar alguma coisa na loja cafona de colunas gregas só porque ele quer ver a réplica da estátua igualmente cafona.

Não temos muito, mas o que temos não vai alimentar quem tem saudade do regime militar, apoia atos pelo fechamento do Congresso, do STF, obriga empregado a votar no amigo dele, que grava live mentindo que a situação da pandemia por aqui era bem diferente da Itália e depois ameaça botar todo mundo na rua.

O mesmo vale para a hamburgueria cujo dono acha que o Brasil não pode parar por causa de 5 ou 7 mil mortes – será que 25 mil serão capazes de fazê-lo pelo menos franzir a testa?

Vale também para a loja de materiais esportivos e a rede de academias suspeitas de financiar o caos.

Mas não só. Posso não viver muito, mas até o fim da vida vou trocar de canal toda vez que vir o rosto de quem, em meio ao morticínio, pergunta por que tanto mimimi diante da morte se ela é parte da vida e por que tanta ojeriza à tortura se ela sempre existiu.

Como público, como espectador, e como alguém que ainda pode ser ouvido, ao menos pelo meu filho, não serei plateia ou audiência nem para atrizes saudosas da ditadura nem para dublê de apresentadores e empresários que, com a arrogância de quem nunca ouviu um "não" na vida, jurou que na favela ninguém morreria, "só" velhinho e gente já doente.

Olho para os velhinhos de saúde limitada que chamo de vô e vó e aviso: esse cara não entra em casa, nem como atração de TV nem como garoto-propaganda (se ele fizer anúncio de água, eu passo a tomar detergente).

Sobre o dono da emissora que defende apedrejamento para quem noticiar as mortes na pandemia, adoraria viver na mesma área de concessão para espalhar posts e cartazes todos os dias até o fim da vida dizendo: desligue essa TV, não compre nada que tenha a digital deste homem que vive da sua audiência.

Feito isso, é hora também de rever amizades.

Os sinais de indigência estavam dados antes, durante e depois de 2018, mas a pandemia eliminou qualquer disfarce de ignorância ou ingenuidade dos que, no desespero das opções em jogo, caíram na conversa.

Pois uma coisa é cair na conversa.

Outra é dar sustentação a ela.

Se pensadas coletivamente, algumas pequenas decisões podem fazer a diferença. Nas redes, tenho deletado sem dó ou saudade todos os conhecidos que fracassaram em tudo na vida, inclusive em serem boas pessoas, e decidiram atribuir à ciência, aos professores, à universidade gratuita, aos livros, aos artistas, ao pensamento crítico, à imprensa e a tudo o que forjou nosso caráter todos os males a serem empastelados em troca de uma nova ordem. Uma ordem limítrofe na qual nascemos e morremos sem pensar a que viemos.

O afastamento é o mínimo a se fazer diante de quem passou a quarentena minimizando as mortes da pandemia e riu ou aplaudiu cada vez que o líder da seita disse "e daí".

Achava que era só conversa de ressentidos até descobrir que eles eram também um risco sanitário.

Na vida e nas redes, hoje passo bem sem ler absurdos diários, apesar da fartura etnográfica do que postavam para entender a cabeça do fascista disfarçado de patriota.

Levei muito tempo para entender esse funcionamento. Mas entendi. Agora, já que transformar é impossível, é necessário fechar as torrentes e deixar que as ideias sequem por inanição, sem palco, resposta ou outras ações eletrônicas que se convertam em engajamento. Simplesmente deixem de seguir.

Boicote um fascista. 

Não tenha medo de dar nome aos bois, como fez o médico Arnaldo Lichtenstein, diretor técnico do Hospital das Clínicas, em São Paulo, ao dizer, em um debate na TV Gazeta, que havia uma diferença semântica e moral entre negar a ciência e usar a pandemia para botar em prática uma lógica eugenista. (A definição está no Google, pode procurar.)

"O que vai acontecer quando as pessoas não defendem o isolamento? Não se fecha comércio, a economia não para, o governo não precisa colocar dinheiro na economia, as pessoas que vão morrer, muitas, são os idosos, aí tem a fala de 'aí ia morrer mesmo' ou as pessoas que já tem doença. E vão ficar os jovens e atletas. Então se a gente pegar pedaços da fala tem uma lógica intensa. Isso chama eugenia. Lembre-se de que sistema político mundial usava isso", disse. 

É exatamente disso que se trata.

Sabendo ou não, aquele seu amigo tem os olhos embotados de cinismo e eugenia quando pede para seguir o jogo, já que "só" os indesejáveis vão morrer. Você pode até alertá-lo. O que vem depois é o que vai definir se seu amigo falaria o mesmo sobre raça pura, capacitismo, arte degenerada e os benefícios dos campos de trabalho forçado que mataram 6 milhões de pessoas no século 20. Um desses campos tinha à entrada um deboche em forma de inscrição: "o trabalho liberta".

Aos que buzinam em frente de hospitais, fazem carreatas para exigir a manutenção dos criados na trincheira, peitam enfermeiras, jogam pedras em jornalistas, levam armas a acampamentos em Brasília ou postam mensagens com fuzil e ameaças a quem não se curvar à vontade do grande líder, desejo apenas a lei.

Aos conhecidos, familiares e vizinhos que aplaudem tudo isso, quero só distância. Me contento em não desejar para gente assim o que gente assim deseja para qualquer um que não seja como eles.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.