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Matheus Pichonelli

De Collor aos ex: por que todo mundo quer revisar o passado nesta pandemia?

Matheus Pichonelli

01/06/2020 04h00

O ex-presidente Fernando Collor. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Nem como tragédia nem como farsa. Na quarentena do coronavírus, a história se repete mesmo como "oi, sumida" e "oi, sumido".

Em alguma fase dentro do período de isolamento, ex-parceiros e antigos crushes decidiram reatar (ou tentar reatar) laços, pedir notícias e procurar alguma brecha para recomeçar histórias ou ajustar as contas de um passado distante ou nem tanto.

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Não há estudos (ainda) que apontem quantas vezes as plataformas do streaming tocaram "Como vai você", do Roberto Carlos, desde o início da pandemia. Mas já se sabe que, em relação ao ano passado, a expressão "Por que estou sonhando com ex?" (em inglês) cresceu 2.450% nos sistemas de busca, segundo a empresa de marketing digital AGY47. 

Em entrevista ao "El País", a psicóloga especializada em terapia de casal Patricia Rosillo explicou o fenômeno. Em um momento como o atual, os dramas passados, comparados com os que estamos vivendo, são relativizados. E, assim, fica fácil esquecer que, se a relação não funcionou naquele momento, deve ter sido por algum motivo.

Remoer o passado, pelo visto, é também uma maneira de buscar abrigo. E, de certa forma (ingênua), acreditar que não somos (ou fomos) tão maus.

O tempo que sobra parece estar no centro do fenômeno. Até a Organização Mundial da Saúde declarar a pandemia do coronavírus, a vida da maioria de nós era mais ou menos como uma esteira de game de plataforma dos anos 80: uma tela acelerada onde o personagem principal (nós) desvia de obstáculos, pula para pegar os brindes que a vida oferece e ganha um gás enquanto enfrenta intempéries sem tempo de olhar pensar no que passou ou está passando. Qualquer desatenção com o que vinha à frente era um risco de trombar com uma pedra ou uma caixa explosiva.

Com a quarentena, o jogo travou. E ficamos presos ao meme do John Travolta olhando pra lá e pra cá perguntando "E aí? O que tem para hoje?".

Não tem.

Muitos, diante da esteira suspensa de novidades, resolveram recuar a tela e rever um filme em perspectiva.

Não deve ser por acaso que, em homenagem aos românticos isolados, o casal interpretado por Julie Delpy e Ethan Hawke em "Antes do Amanhecer" (1995) decidiu se reencontrar na pandemia para reinterpretar uma famosa cena ao som de "Come Here", de Kath Bloom. Ou que elencos de filmes clássicos, como o de "Os Goonies" (1985), se juntaram em uma live 35 anos depois da estreia. Foi um dos assuntos mais falados no Twitter naquele dia.

Na quarentena, até o casal Celine (Julie Delpy) e Jesse (Ethan Hawke) se reencontrou por videoconferência

Para além da nostalgia, tudo agora é reencontro nas videoconferências que velhos amigos promovem. É também uma chance de dizer o que ficou por ser dito quando os antigos encontros, pelas ruas, eram mediados pelo acaso, e não pelo Zoom.

Tempos atrás, escrevi por aqui que o fenômeno das reprises da TV estava abrindo um campo de ressignificados. Estava aberta a temporada também de descobertas. 

Na semana passada, até o Carnaval de 1919 virou destaque nas notícias do dia, algo impensável em condições normais de pressão e temperatura. Isso porque a celebração contava a história da explosão de alegria (e outras coisinhas) represadas durante o confinamento da epidemia da gripe espanhola por aqui. Se havia alguma esperança no futuro, ela estava no desfile de estreia do Cordão da Bola Preta há 101 anos.

Em tempos normais, os jogos corriqueiros estariam passando na esteira industrial da vida e sendo devidamente esquecidos na rodada seguinte.

O mesmo com a produção de estreias, episódios de novelas e novidades da programação cultural que nunca conseguíamos conferir em tempo hábil num mesmo fim de semana.

Agora quem consegue um pouco de tempo e paz para respirar corre para ver não o que está passando, mas sim o que perdeu. É hora, então, de saber de histórias que se passaram nos bastidores da novela que já acabou na década passada. Ou saber o que causou, afinal, o racha no elenco da equipe rebaixada no ano anterior.

Se tem uma coisa que nunca sai de cena é o ressentimento.

De todos os quarentenados, ninguém viu melhor oportunidade pandêmica para mexer no passado e contar sua própria versão dos fatos do que o ex-presidente Fernando Collor de Mello. No Twitter, no meio da quarentena, o hoje senador fez um mea culpa pelo congelamento da poupança ocorrida há 30 anos. Também começou a interagir com os tuiteiros e tentar desfazer a marra que impregnou sua imagem nos tempos da Casa da Dinda. 

Mais um pouco e o Sarney adere à moda.

Enquanto as engrenagens do futuro não voltarem a girar, as do passado se aproveitam para lustrar as peças e cobrarem no presente os louros que foram negados nos tempos de glória.

Perto do futuro que se apresenta, o maior terror do passado parece só um gato rouco miando e pedindo uma nova chance.

Ou, talvez tardiamente, o mundo decidiu dar ouvidos a um velho ensinamento atribuído a Nelson Rodrigues, para quem na vida deve-se ler pouco e reler muito. A arte da leitura é a arte da releitura.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.