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Matheus Pichonelli

Romero Britto: por que rimos de um nordestino sendo esculachado nos EUA?

Matheus Pichonelli

15/08/2020 12h56

Correu feito rastilho de pólvora, na sexta-feira (14), o vídeo em que uma mulher vai até a galeria do artista plástico Romero Britto, em Miami (EUA), e estraçalha uma obra de sua autoria avaliada em R$ 26 mil. O ato seria uma vingança após o artista plástico recifense supostamente humilhar os funcionários da mulher em um restaurante perto dali.

No embalo das postagens, e das lembranças do tempo em que meus pais trabalhavam e eram também humilhados pelos motivos mais diversos (tipo não ter cinco CENTAVOS para troco) em um restaurante na cidade onde nasci, compartilhei com satisfação o vídeo como uma sentença. Não sabia exatamente o que meu conterrâneo tinha feito, mas se estava na internet devia ser verdade.

"Tomou?", escrevi, entre risos. E fui dormir o sono dos justiceiros.

Quando acordei de sonhos intranquilos, decidi apagar a postagem. Revendo a cena, senti mais mal estar do que qualquer outra coisa.

Não tenho procuração para defender Romero Britto. Não sei como, em seu círculo pessoal, ele age e trata seus amigos, funcionários e fornecedores.

Ele é um homem rico, desses que vencem na vida e se tornam celebridade, e tem idade e dinheiro suficiente para se defender sozinho.

Sei, porém, que ele é persona non grata no círculo de uma certa inteligência que define o que é e o que não é bom gosto. Nesses círculos, não cabem admiradores das cores primárias espalhadas nos recortes geométricos que reproduzem qualquer coisa, de gatos siameses a poderosos da cena política, geralmente oferecidos aos homenageados como mimo.

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Aparentemente, Romero Britto é uma espécie de bajulador-geral da República, esteja quem estiver no poder. E isso é razão, não exatamente injusta, de deboche.

Até aí, você pode gostar ou não. Pode comprar seus quadros ou penduricalhos ou não. Ostentar ou não.

Pode achar ridículo e até rir da cena — quem sou eu para dizer o que é ou não objeto de gozo em tempos tão cinzentos como a pandemia.

Mas, passado o primeiro impacto, algo me caiu mal no bolo digestivo da brincadeira.

Em tempos em que as redes pautam o noticiário, e não o contrário, soube pelo jornal que a razão para tanta ira foi que o artista plástico reservou uma mesa para 20 pessoas para tomar café da manhã a preços módicos e ainda pediu desconto. E quem nunca?

No vídeo, a dona do restaurante desanca: "Você humilhou meus funcionários, pediu que eles tirassem a música e pediu que eles não falassem, porque senão o senhor não iria mais". Não sou juiz da causa. Nem da educação alheia nem da elegância.

Da dona do restaurante nada sei, a não ser, pelas primeiras notícias, que é americana (ou espanhola?) e se dirigiu a um brasileiro em espanhol. Ninguém é obrigado a saber que no Brasil falamos português. E que nossa capital não é Buenos Aires.

Mas não posso deixar de questionar se haveria tanto rebuliço com a cena se um americano branco e rico tivesse pedido, em um restaurante onde reservou uma mesa, para que alguém baixasse o som. Poderia ser indelicado a ponto de dizer que, caso contrário, não voltaria mais à espelunca, mas ele receberia como troco uma visita colérica em seu ambiente de trabalho pouco depois?

A cena alimentaria o transe das redes se este americano branco fosse, finalmente, "colocado em seu lugar?".

Ou o que estamos celebrando é só uma versão 2.0 daquela conversa elitista à brasileira que vê uma pessoa negra em posição de comando e se vinga chamando de "pretinho metido" porque ele está na mesa do restaurante e não na cozinha?

Dúvidas, apenas dúvidas.

Pois, na dúvida, apaguei minha postagem em tom de chacota. Ela fazia coro ao sentimento catártico de justiça com as próprias mãos contra alguém que não teve nem a chance de responder ao ver seu trabalho estraçalhado para alegria da plateia sedenta por vingança. Vingança de quê?

De novo, não tenho procuração de ninguém, nem nunca vou saber o que Romero Britto, rico e já crescidinho, faz e fala em seu círculo pessoal.

Mas me nego a celebrar a imagem de um estrangeiro ou estrangeira humilhando um nordestino que ganha a vida honestamente, goste-se ou não de seu trabalho, longe de seu país. Sejamos menos vira-latas.

Ou então vamos ouvir o cearense Belchior:

"Não, eu não sou do lugar dos esquecidos, não sou da nação dos condenados, não sou do sertão dos ofendidos, você sabe bem. Conheço o meu lugar."

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.