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Matheus Pichonelli

Obrigado, Adnet. Sem você nossa quarentena seria (ainda mais) insuportável

Matheus Pichonelli

17/08/2020 04h00

Marcelo Adnet imita políticos em seu programa (Reprodução)

A realidade tem sido deprimente para todo mundo em 2020. 

Mas ela seria muito mais amarga se não fosse o Marcelo Adnet.

Com seus esquetes curtíssimos do "Sinta-se em Casa", o humorista, ator, cantor e compositor parece ter encontrado na cena política uma espécie de Santo Graal da inspiração que precisa ser exposto, como paródia, até ser purgado. 

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Para qualquer comediante, seria difícil competir com o nonsense oferecido diariamente pela vida real. Ainda mais para quem precisou se trancafiar em casa. Mas o sujeito parece ter um figurino inacabável nas cordas vocais capazes de colocar no mesmo cenário figuras como Jair Bolsonaro, Sergio Moro, Fabrício Queiroz, João Doria, Dilma Rousseff, Lula, Ciro Gomes e Marina Silva (na réééde). Na piada, como na vida, governistas e opositores se comunicam em ruídos girando em falso e tentando chegar a lugar algum.

Nos últimos vídeos até Donald Trump tem aparecido em imitação impagável em lives com Nicolás Maduro, Boris Johnson e Vladimir Putin. Detalhe: se já é difícil captar trejeitos na língua nativa, fazer piada em inglês ou portunhol deve ser tão complexo quanto cantar heavy metal com a voz de Caetano Veloso. Ok, isso ele fazia já nos tempos de MTV.

Não sei vocês, mas eu nunca mais consegui ouvir a voz de nenhum desses personagens reais sem imaginar que eles estão sendo, na verdade, dublados por algum imitador. Pois a cada dia que passa eles estão mais próximos da imitação de Adnet.

Essa imitação é econômica em recursos. Uma peruca até aparece em cena, com um terno aqui, um óculos ali, uma camiseta da seleção acolá e, pronto, a paródia está pronta, como cópia autêntica de uma realidade mediada pela farsa. 

Sua versão do Bolsonaro aparece não gritar nem mais nem menos do que o personagem que chegou ao Planalto prometendo lutar contra os moinhos no caminho da família brasileira, a começar pelo kit gay, uma farsa inventada para ganhar eleição. 

Com Adnet, o presidente é escancarado com suas cu-es-tões, seus isso-aê, sua incapacidade de pronunciar uma palavra com mais de duas sílabas e sua risada pavorosa de carrasco que estrangula em regozijo.

Nós, pessoas normais, vemos o drama e queremos deitar em posição fetal e chorar até as gerações z e alpha terem idade suficiente para disputar cargo político e aposentar os entulhos autoritários do século 20.

Adnet deve sentir o mesmo, mas tem a opção de pegar a caricatura em estado bruto e desembrutecer, como quem diz: é esse mesmo o seu mito? Retocado, o que sobra do messias desenhado em postagens e gabinetes do ódio, ou da bajulação, que anda a cavalo, que especula o golpe e quer ser pintado como Júlio César?

O que sobra é o comentário entre vizinhos na manhã seguinte. Você viu a última imitação do Adnet? Qual, aquela em que o Bolsonaro fala com o Renato Gaúcho? A que ele toma uma prensa do Donald Trump? Ou a que ele aparece cantando uma versão particular de "Mila" com mil e uma noites de amor em cloroquina? (Desafio alguém lembrar da canção original depois de ouvir os versos adaptados: "sem comprovação ficou, ninguém te aceitou. Sem medicina certa, ciência ou autoridade. Sem ministro da saúde, pode tudo rolar. Até ema agredindo. Querendo me bicar. Eu e você contra o PT e o PSOL").

Adnet, que nesta segunda-feira poderá ser visto sem disfarce ou imitação no programa Roda Viva, da TV Cultura, é herdeiro de uma tradição, entre comediantes, que faz da imitação o seu recurso, num leque de personagens que varia conforme o tom de voz, como fazia Chico Anysio. Há quem tenha contado 154 personagens chicoanysianos até 2012. Adnet tem tempo para chegar lá.

Numa época em que rir era chutar quem já é esculachado pela vida, geralmente os tipos populares, sem dentes e sem estudo, Adnet fugiu do humor reaça que marcou o stand-up comedy na virada dos anos 2000 para 2010 e trouxe para a cena, sem precisar apelar, os influencers, políticos ou não, de seu tempo. Com a paródia, criou a sua "A vida como ela é" particular.

Entre esses tipos pincelados estavam lideranças que alguns levavam a sério até perceberem que elas estavam mais próximas de um esquete do Monty Python do que do desafio histórico que assumiram ao serem eleitas.

Rir delas não é a suspensão, em si, da gravidade de tudo o que representam, mas uma forma de observar com lupas uma caricatura que não precisa ser pintada em cores fortes para gritar. Basta uma demão de tinta. E elas passam a falar por si. Como a demofobia de Bia Doria, em sua fala sobre moradores de rua, copiada e colada sem que soubéssemos, afinal, o que era verídico e o que era verissimilhança.

"Estamos vivendo numa época de dificuldades, mas a dificuldade traz descobertas", disse Adnet, em uma entrevista recente.

Até a quarentena, percorrer a cidade e observar trajetos e trejeitos nos bares, nas praias e nas repartições era tão importante para o humorista quanto para o cronista do seu tempo. Adnet diz que aprendeu a observar o mundo pela janela de casa quando jovem.

Essa janela hoje são as muitas telas por onde ele testemunha e tem absorvido os sotaques do burlesco antes de serem retransmitidos em outras telas. Entre uma e outra há uma casa com jardim e piscina. É ali, por contrassenso, que o Brasil se revela.

Do sertanejo que foi colocado a beber e sumiu de cena levado pelo cavalo ao passeio de jet ski do presidente para celebrar o que não merece celebração, não tem nada que escape daquele humor minimalista e expandido por confinamento.

O Brasil dos últimos anos está todo lá em forma de caricatura, a etapa seguinte, quase instantânea, de uma história que não só se repete, mas se embrenha entre a tragédia e a farsa.

Tem quem não ria e queira ver morto quem botou o espelho ali. Esses estão perdidos.

E tem quem ri de nervoso.

Alvo da ira dos fanáticos de sempre, Adnet admitiu que o comediante brasileiro hoje não pode atuar com tranquilidade, pois trabalha com medo, sob xingamentos e ameaças. "É um clima muito ruim para a democracia."

É, sim. Mas a exposição do ridículo ao crivo da comédia é também uma forma de resistir.

Tornou-se um clichê, pelo excesso de uso, o velho ditado: é rindo que se castigam os costumes. Se for, o riso nunca foi tão necessário quanto no Brasil de 2020.

Na casa de Marcelo Adnet cabe um país inteiro que não pode desaprender a sorrir. 

Enquanto nos confinamos, ele gravou um nome no panteão dos grandes humoristas da nossa história. Se já não for o maior.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.