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Matheus Pichonelli

No Brasil de 2017, o maior desafio é não emburrecer

Matheus Pichonelli

15/08/2017 04h00

Crédito: Shutterstock

Tem alguma coisa muito estranha no mundo quando alguém comemora uma notícia relacionada ao corte das bolsas de pesquisa em universidades, institutos de pesquisa, centros tecnológicos e de formação profissional, como as oferecidas – e hoje ameaçadas – pelo CNPq. Dá até vergonha dizer o óbvio, mas estes são tempos em que é preciso tomar cuidado para não ser engolido pelo absurdo.

Dias atrás, a pesquisadora Mauana Schneider, doutoranda em química, fez um duro relato, em sua página no Facebook, sobre esse tipo de celebração promovida por quem confunde pesquisa com mamata, e acusam bolsistas de serem "pagos para estudar" ou, em último caso, quebrar o Brasil.

No texto ela explicava o que, em tese, deveria ser evidente: "Quem desenvolve vacinas, novas técnicas cirúrgicas, controles de qualidade, tecnologias renováveis e até mesmo foguetes pra lançamento de satélites são esses que terão suas bolsas cortadas. Essas pesquisas são financiadas pelo governo e os cientistas, que fazem a pesquisa acontecer, também".

Ela lembrou que o trabalho em laboratório exige tempo, muito tempo, e que não é possível uma pessoa ter um segundo emprego e levar a pesquisa a sério. "Por isso recebemos bolsa. Porque, por mais amor à ciência que nós tenhamos, amor não paga boleto e precisamos nos sustentar."

Voltamos à premissa dos primeiros parágrafos. Somente em uma sociedade doente alguém ousaria pensar em comemorar corte em bolsas de pesquisa para a ciência, uma medida que, a longo prazo, impacta todos nós. (Menosprezo semelhante temos observado em relação a quem "ganha a vida" como – horror dos horrores! – artista, mas isso é outro assunto).

E por que estamos ficando doentes? Arrisco. Em um mundo em que tudo acontece (e muda) tão rapidamente, passamos mais tempo tentando nos agarrar às ondas do momento do que refletindo sobre para onde estamos navegando. Esse mundo acelerado pede cada vez mais ação imediata e valoriza cada vez menos o esforço de quem apura, analisa, compara, cria relações, pensa nas causas, aponta a consequências, imagina saídas – trabalho que exige tempo, distanciamento e, claro, apoio.

Vale lembrar que os países que mais investem em pesquisa, como Japão e Suécia, são os que dispõem dos melhores índices de desenvolvimento humano e econômico. Nesse quesito, o Brasil figurava na 36ª posição, segundo o último levantamento da Batelle, uma organização sem fins lucrativos dedicada ao assunto.

Nosso país é historicamente marcado pela ânsia e a ganância: bebemos das fontes de produção de riqueza até a última gota sem pensar no dia seguinte – e é no dia seguinte que vem a conta, como por exemplo, da destruição da floresta para o enriquecimento imediato.

Em tempos de crise econômica, a miséria humana é a primeira a se manifestar: amedrontados pela ausência de perspectiva no presente, esquecemos de construir o futuro, um projeto no qual os pesquisadores, das ciências humanas, biológicas ou exatas, são nossos grandes arquitetos.

"Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia", escreveu Marina Colasanti, em um poema que diz muito sobre nossas desistências atuais.

E porque perdemos a perspectiva de futuro, deixamos de querer entender nossas raízes históricas. Passamos a viver um presente contínuo e constante, sem força ou disposição para nos entender como gente, com nossas limitações, nossos medos e nossas contradições. Para isso é fundamental saber ouvir quem se dedica a avaliar os impactos da nossa rotina cristalizada e dos nossos vícios naturalizados.

Em "O Filme de Minha Vida", que entrou em cartaz no início de agosto, o personagem interpretado pelo ator e diretor Selton Mello diz ao protagonista, a certa altura da história, que a diferença entre um porco e o homem é que o homem sabe que é homem, mas o porco não sabe que é um porco (a alegoria do livro que inspirou o filme era uma vaca, mas isso não vem ao caso).

No Brasil atual, polarizado, empobrecido, cheio de (falsas) respostas imediatas e cujo lema na bandeira poderia ser "farinha pouca, meu pirão primeiro", embrutecemos toda vez que um pesquisador precisa vir a público explicar que seu trabalho é um trabalho.

"Não pense em crise, trabalhe" pode parecer um bom slogan, mas mal esconde o medo de quem pensa – e trabalha com o conhecimento.

Nos dias atuais, tão corridos quanto desgastantes, é difícil chegar em casa depois do expediente e não cair de cansaço ou desânimo na poltrona sem disposição para pensar em nada além do que fazer no instante seguinte – e, assim, driblar as angústias inevitáveis de uma vida repleta de lacunas e dúvidas complexas com potes de sorvete, filmes com final feliz, medicamentos contra a ansiedade ou insônia e slogans que pegamos emprestados de movimentos refratários ao conhecimento e repetimos sem pensar a respeito. Eu sei que a gente se acostuma…mas não devia.

Dizer que pesquisadores mamam nas tetas do governo e são pagos para não trabalhar é um crime confesso de ignorância. Existem muitos desafios em uma época em que, tomados pela pressa e a ansiedade, todos opinam sobre tudo e ninguém precisa entender de nada. O maior desses desafios é não emburrecer.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.