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Matheus Pichonelli

Não acredito em inferno astral. Mas que existe, existe

Matheus Pichonelli

26/09/2017 04h00

 

A Luciana Bugni que me desculpe, mas existe, sim, algo pior do que conviver com libriano. É nascer libriano. Não que eu leve horóscopo a sério, claro: é que, com uma balança herdada desde o nascimento, aprendi no berço a equilibrar ceticismo e prudência sobre as recomendações do velho Quiroga. Um dia lemos antes de sair de casa; no outro dia damos de ombros. E assim fazemos valer a fama de mudar de ideia a todo instante.

É um equívoco pensar que oscilamos em tempestades de dúvidas e confusões. O que temos é mais de uma certeza o tempo todo, e elas geralmente são incompatíveis. Por exemplo: café ou cerveja no fim de tarde? E por que não os dois? Café é bom. Cerveja também. Um acelera, a outra acalma. O estômago que se vire para digerir.

Vai ver é por isso que gostamos de almoçar sozinhos, sobretudo às quartas-feiras, para ninguém reparar naquele pedaço de sushi boiando no prato de feijoada. Não precisamos, afinal, fazer do almoço uma escolha excludente do mundo animal.

Organizando direitinho, tudo cabe no quilão da firma, mais ou menos como nossa lista no Spotfy, onde Duke Ellington, Molejão funk proibidão e coral de Natal convivem na salada mista. Ou na prateleira de livros iniciados e jamais terminados porque o outro sempre parece mais interessante no dia (ou no minuto) seguinte.

Não se trata de confusão. É essa maldita missão delegada pelos astros de buscar justiça e equilíbrio que nos impede de pensar em ficar mal com alguém e elimina do nosso vocabulário a palavra "não", seja para comprar serviços desnecessários (porque o cara do álbum de fotografia do filho jurou que era a última venda dele e ele precisava voltar para Manaus ainda hoje e você acreditou), seja para negar aquele trabalho furado, seja para comparecer a eventos que trocaríamos facilmente por uma boa gripe.

A gripe, aliás, é uma espécie de recesso na obrigação de fazer escolhas para librianos.

No campo afetivo, dizem os que acreditam em horóscopo, a vontade de estar em todos os lugares e estações ao mesmo tempo parece também fazer estragos – falo com a autoridade de quem casou aos 28 anos, no meio do Retorno de Saturno, aquele alinhamento dos astros que nos faz rever as escolhas da vida, da profissão ao filme favorito (peça a um libriano citar um filme favorito, um só, e vai ver atualizadas as definições de tilt).

Mas isso de Retorno de Saturno, garanto hoje, também é bobagem – amanhã já não sei. É conversa para a gente esconder as indecisões e covardias em uma personalidade sobre a qual não temos o domínio ou controle. Ou não.

Com a idade, o librianismo nos desafia até o limite – sobretudo em tempos de inferno astral. Dias atrás, passei uma manhã na Prefeitura de Campinas em busca de uma certidão que me desobrigue a recolher ISSQN, o famigerado imposto sobre serviços de qualquer natureza; tudo para não ver devorada boa parte do meu pagamento na cidade onde presto serviço mas não moro (quem tem sonhos é adolescente, vocês dirão: adulto gosta é de isenção de taxas). O registro foi negado porque não apresentei as contas dos últimos seis meses de um telefone fixo que não tenho.

Passar o dia numa repartição pública é um teste para o nosso equilíbrio mental. Não tem lugar onde nos sentimos mais vulneráveis e ignorantes, com a exceção, talvez, das consultas com o médico ou com o gerente da conta.

Chega a sua vez, você apresenta a declaração, devidamente registrada em cartório, jura não possuir linha fixa naquele endereço, que ninguém hoje em dia tem linha fixa em lugar algum e ainda assim o sujeito te manda voltar para casa e anexar o documento no sistema eletrônico. Pessoalmente não vai ser possível, senhor.

Perco a manhã, volto para casa. O sistema está fora do ar. Uma, duas horas. Você tenta telefonar, mas desiste e volta para a prefeitura. Eles explicam de novo que "veja bem, senhor, somente pelo cadastro eletrônico". Mas o sistema tá dando pau, você explica. "Então volte mais tarde, traga num pen drive e fazemos juntos por aqui". Você sai. Compra um pen drive. Senta na frente do primeiro computador. Descarrega tudo. Volta. E o sujeito que prometeu te receber está em reunião até o fim do dia, não deve voltar, tem como o senhor retornar amanhã?

Tivesse nascido touro, quebrava a vidraça da repartição e estava tudo resolvido, certo? Mas quem mandou nascer libriano?

Você volta para casa derrotado, com o pen drive na mão, e ainda pede desculpa pelo transtorno. No caminho, o ônibus no horário de pico vai quebrar, sim, muito ou com certeza?

Ferrado, ferrado e meio. Você desce do ônibus, ainda tossindo com a fumaça do motor que pifou e chama o Uber. O Uber, preço diferenciado ("é por causa do horário, senhor"), estaciona. O outro ônibus passa com um sorriso na traseira escrito "chora mais".

Tem dia que o dia é noite, você pensa, respirando fundo e fazendo as contas sobre o calendário lunar.

Em casa, você recolhe o que sobrou de você mesmo, abre o expediente, já é quase o dia seguinte, vê tudo atrasado, o filho quer bolacha, você enche o menino de bolacha, ele obviamente vai passar mal e você em algum momento terá de parar o texto para limpar o vômito, sim, muito ou com certeza?

Mais um dia perdido, mais um dia da marmota. Pior do que ser libriano é ser libriano no inferno astral. Não acredito em nada disso, claro. Mas que existe existe.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.