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Matheus Pichonelli

Com os fogos de artifício, explodimos também o bom senso

Matheus Pichonelli

04/01/2018 04h00

Foto: Getty Images

Um amigo costuma desconfiar dos programas de TV sobre o mundo animal que tentam comprovar, nos flagrantes da selvageria, a aplicação da lei do mais forte. Para ele, essa é só uma forma de interpretar aquele universo, tomado de estepes e vegetação rasteira, à nossa maneira. Na verdade, se a gente reparar, diz ele, a sobrevivência das espécies é resultado das alianças: em busca de proteção e companhia, os grupos aceitam dividir o tempo, o espaço e as funções, numa simbiose aqui denominada de camaradagem.

Não fosse isso, a lei do mais forte já teria sido provada em algum momento desde que o primeiro anfíbio decidiu se aventurar fora da água, e teríamos hoje então um bicho grandão, sozinho, peludo e sem amigos, comemorando vitória no topo de um planeta devastado.

Caminhamos para isso, mas não estamos nem perto. Pelo contrário: estudos feitos por nós, humanos, mostram como o chamado "macho alfa" desses bandos destoa do estereótipo do bicho violento, agressivo e competitivo a quem todos tributam medo e obediência. Em vez disso, são discretos, seguros e exercem efeitos calmantes sobre o grupo. Entre lobos, por exemplo, cooperam, compartilham e só se alimentam depois que todos estão satisfeitos.

Não sou biólogo, mas desconfio que meu amigo tenha uma certa razão ao citar a estratégia dos cães, provavelmente o maior case da aliança entre espécies da História. Em algum momento da nossa evolução, eles prometeram não nos morder, nós prometemos investir parte significativa dos nossos rendimentos mensais em ração, coleiras antipulgas e incursões ao pet shop e em troca ganhamos lambidas e amizade para toda a vida.

Uma pena que essa aliança seja abalada justamente nos dias mais festivos para nós, humanos. Como no Réveillon, nas festas juninas, nas vitórias do nosso time de coração e até nas quermesses da igreja. A cada ano vemos na rede um movimento cada vez maior de rejeição à nossa mania de demonstrar grandeza por meio de fogos de artifício. "Não faça isso", "os bichos se assustam, saem correndo", "Seja civilizado".

Os relatos, no dia seguinte, sobre desaparecimentos de animais nessa época é alarmante – e, ao menos na nossa cidade, a coisa se tornou questão de segurança pública: as buscas por um cachorro mobilizaram, em um dos casos, até as forças policiais (dois soldados, é verdade, mas ainda assim).

E, no entanto, seguimos gastando os tubos e enviando para o céu as nossas fantasias festivas em forma de arroto iluminado.

Um outro amigo, provavelmente cético também quanto à ideia da lei do mais forte, conta que desta vez só foi conhecer o ano novo na manhã no dia 1º porque, na festa onde se programou para passar a virada, o novo cunhado transformou a área de lazer alugada numa trincheira de Iwo Jima. Ali, segundo ele, havia bombas saindo de dentro do arroz com lentilhas, o que apavorou não só os cães como também os filhos, alguns ainda no colo, dos convidados – a certa altura, as crianças ficaram confinadas num dos quartos para compartilharem o mesmo e uníssoro choro. Nada que comovesse o dono da artilharia.

Uma das crianças, um pouco mais velha, foi avisar o convidado ilustre sobre o pânico generalizado da brincadeira e ouviu um belo discurso sobre a importância de aprender desde cedo que a vida era dura, barulhenta e cheia de fogos de artifício, com os quais, na idade dele, ninguém implicava. Sobrou para os tempos atuais, cheio de mimimi, estraçalhado pela ditadura do politicamente correto capaz de transformar até bichos e crianças em seres humanos. Em outras palavras: ele lamentava o transtorno, mas ali prevaleceria a lei do mais forte até as primeiras horas do ano seguinte.

Essa lei do mais forte, provavelmente, não renderá um novo convite para as próximas festas, mas não deixa de ser curioso o choque de valores de nossos contemporâneos: o mínimo de consideração com as crianças e bichos da casa – o lado mais fraco daquele habitat – para uns é empatia e, para outros, frescura.

Sobre esta ala da civilização basta bater o olho para imaginar que, supostamente calejados pela vida de outros tempos, seus representantes são absolutamente impermeabilizados a qualquer crise existencial. Não choram, não se emocionam com músicas ou filmes e colocam toda a literatura produzida de Shakespeare a Paulo Coelho no limbo das conversas fiadas de quem não entendeu o sentido fatalista da experiência humana, mais ou menos como compreendemos a selvageria animal.

Outra balela. Os representantes dessa espécie não precisam agradecer ao meteoro do Cretácio que extinguiu os dinossauros, seus prováveis concorrentes em tamanho e circunferência, nas festas de fim de ano.

Mais ou menos como o comediante durão que aponta a fragilidade de todo mundo que se ofende com suas piadas, mas não suporta dois segundos de contestações sobre sua limitação intelectual, os machões das festas de fim de ano são capazes de passar 365 dias fazendo troças do melindre dos defensores de animais e dos marcos civilizatórios, e uma década chorando, num escarcéu digno de recém-nascidos, quando alguém estoura as suas bolhas de fantasia.

Pois experimente dizer, ao ouvido do cara durão, que o grau de tolerância a ele, inclusive nas lojas e concessionárias de automóveis de luxo, é proporcional ao limite do seu cartão de crédito. Ou faça qualquer brincadeira sobre as suas disfunções e limitações geográficas na região da genitália. Relembre que "seus conhecidos, e conhecido não é amigo, te chamam de espalha roda". Ou simplesmente diga: "esse seu troféu não te ama de verdade".

Pronto. O escarcéu cancelaria qualquer projeção de fogos, devidamente desabilitada pelo choro e o ranger de dentes dos seus entusiastas.

Em tempo. Feliz 2018. Como diria (e provaria) o Belchior, ano passado eu morri, mas neste ano eu não morro.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.