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Matheus Pichonelli

A barbearia não é modinha: é a Disneylândia do homem adulto

Matheus Pichonelli

31/01/2018 04h00

 

Barbearia Paulitano/Foto: Divulgação

Durante anos a herança do meu filho dependeu quase exclusivamente das habilidades do Luizão, o barbeiro vizinho que promovia intervenções capilares cirúrgicas entre o boteco e o açougue do nosso quarteirão. Ali gerações inteiras de cabeludos apressados conseguiram economizar horrores de tempo e dinheiro com vistas à posteridade.

Naquela cadeira de ferro – que ele se orgulhava de manter como estava desde a Copa de 70 – não adiantava insistir que ele manejasse com cuidado a região das entradas: a tesoura, também comprada enquanto Pelé e Jairzinho batiam bola no México, era uma espécie de trator a fabricar crateras e vicinais nas nossas cabeças. O estrago durava o tempo de dizer bom dia.

-E o seu Palmeiras, hein?

-Tá uma droga.

-Prontinho.

Mal dava para cornetar o goleiro ou o treinador e o Luizão já tomava posse da vassoura para recolher as partes destroçadas, algumas ainda com sangue, da nossa orelha e do couro cabeludo. Não teve um dia que não saí de lá me observando no reflexo dos vidros dos automóveis, pensando em terminar o serviço em casa com minha velha tesourinha do Mickey e cantando "aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína".

Com o ritmo de uma máquina em produção industrial, a fila em torno do Luizão não era a fila dos que esperavam; eram os vizinhos sem mais o que fazer pelas manhãs que, ao fim da intervenção, ficavam por lá para seguir a resenha.

Um dia serei um deles, pensava eu, enquanto pagava o serviço com moedas e contabilizava o tempo que me sobraria naquela manhã para trabalhar mais e juntar outras moedas como aquelas para, quem sabe um dia, viajar até a Disney.

Era uma economia dupla, já que saíamos daquele salão, onde se espalhavam pôsteres desbotados e santinhos das antigas campanhas do Maluf, tão desprovidos de pelos do pescoço para cima que a experiência só poderia ser repetida no semestre seguinte, quando a brava e irregular cabeleira que serpenteava as entradas lustrosas se tornava destino plausível de algum alimento perecível ou objeto perdido.

Mas eis que, há poucos dias, a velha Meca das minhas economias deu lugar a uma paleteria. Tornava-se, assim, mais uma instituição do século 20 substituída por algum empreendimento com o sufixo "eria".

Descobri isso ao avisar em casa que iria usar os 15 minutos que me sobravam numa manhã de sábado para cortar o cabelo. Voltei alguns dias depois, e tenho uma boa explicação.

Revoltado com o fechamento sem anúncio prévio do antigo salão, passei em frente a uma barbearia Nutella perto dali para maldizer os novos tempos e reforçar meu compromisso assinado alguns anos antes de que daquela água eu jamais beberia. Virei estatística, assim, na lista da Luiza Sahd.

Acostumado ao modus operandi do antigo vizinho do açougue, liguei em casa para avisar que nos 15 minutos combinados eu estaria de volta; que o velho barbeiro-raiz havia se aposentado mas não poderia esperar outro semestre para arrumar outro. Não tem tu, vai tu.

Entrei, então, naquele salão decorado com ícones do orgulho ogro, como quadros de automóveis antigos, bombas de gasolina antigas, fotos antigas de lutadores de boxe, charutos antigos de todo tipo e uma arara de novas camisetas regatas, bonés e cuecas boxer à venda. No meio de toda a parafernália estava uma única cadeira vazia – uma ilha de couro cercada de lenhadores e objetos pontiagudos por todos os lados.

-Pode sentar, mano, ele já vai te atender, disse o rapaz do balcão.

"Ele" era um pequeno viking nascido já barbudo que parecia saído de uma propaganda da Trivago. Esperei sentado o operador daqueles instrumentos manuais dar a última tacada no jogo de sinuca, lançar a franja para traz, ajeitar o bigode, alisar o suspensório e pegar na geladeira retrô vermelha uma long neck. Era para mim, por conta da casa.

-Que time você torce, meu?, perguntei.

-Não curto futebol, mano.

Ameacei levantar da poltrona, mas meus músculos estavam colados nela como ímã. Foi quando, após conversar com as tesouras e repetir em voz baixa algum mantra que eu não conseguia ouvir, baixou no sujeito o espírito do Barbeiro de Sevilha.

Como num sapateado, ele dançava ao redor da cadeira, aplicando golpes metálicos milimétricos entre borrifadas de água e loção e análises matemáticas de alinhamento dos pelos. Parecia desfilar ao som de Fiiiiiiiiiiiigaro; os fios já não caiam, mas se espatifavam no ar em partículas invisíveis a olho nu. Em alguns momentos, ele recuava, coçava o bigode pontudo, analisava o objeto, no caso eu, como se escolhesse a paleta certa para a pintura.

O barbeiro contemporâneo é, antes de tudo, um artista, e cabe a nós, o público, esperar que a inspiração não venha de Van Gogh.

Dessa água não bebereis, pensava eu, já sem perceber que aceitava o combo barba-cabelo-bigode-cerveja-cueca-boxer como quem aceita a conversão; quando percebi, estava enrolado numa toalha quente em todo o rosto, como uma múmia cosmopolita, visualizando de olhos bem fechados o enterro do velho Luizão e pedindo licença para abrir uma brecha no ouvido e atender o celular.

-Você falou 15 minutos, mas já se passaram duas horas. O que aconteceu?

Um sequestro, respondo num sobressalto. Fui abduzido, embriagado; estou falido e com uma nova poda agendada para sábado que vem. Não sei se volto para casa algum dia. O projeto Disney? Pode esquecer.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.