Como ganhar o mundo sem precisar "despachar" os filhos?
-Eu acho que não deveria ter tido filhos.
-Eu talvez preferisse ter outro pai.
O diálogo é parte de uma das cenas mais cortantes de A Odisseia, filme de Jérôme Salle sobre a vida do documentarista, cineasta, oceanógrafo e inventor Jacques Cousteau, que estreou há algumas semanas por aqui.
O encontro acontece anos depois de o protagonista decidir despachar o filho em um internato para poder correr o mundo a bordo do navio Calypso, um primórdio do Big Brother, onde eram registradas a rotina e as aventuras dos tripulantes.
Cousteau era um ícone. Conquistou o mundo, mas, ao menos até aquela cena (não vamos dar spoiler), não conseguiu mergulhar no universo dos filhos. Para eles, o pai era apenas uma coleção de recortes de jornais.
O filme mostra como, para alcançar o sonho, o Rei dos Mares se distanciou da companheira. Mostra também a frieza de um homem ocupado demais para acompanhar o enterro do pai.
Como Cousteau, é possível pensar em inúmeros exemplos de quem trocou os domingos com a família no jardim zoológico para dar pipoca aos macacos por outros planos de navegação. A começar pelo autor dessa imagem, Raul Seixas, angustiado entre a verdade do universo e a prestação que vai vencer.
Dias atrás passei o dia com meu filho e pensei em tudo isso enquanto olhava as pilhas de livros que não devo chegar perto enquanto ele permanecer pendurado no meu pescoço (a imagem é literal). O mar, para quem aderiu ao home office, é uma estante no quarto ao lado.
Mais perto dos 40 do que dos 30, meu plano de escrever algo que preste e reforçar aquela estante parece dissolvido entre tarefas menos épicas, como brincar de quebra-gelo e assistir 40 vezes ao mesmo desenho.
No fim, sinto como se estivesse num limbo: não tenho tempo ou disposição para mergulhar no trabalho como gostaria nem consigo ser o pai dedicado que deveria. Antes de uma culpa, esse meio-fio muitas vezes serve como desculpa para não ser nem uma coisa nem outra. Fica aqui a confissão.
Em uma coluna recente na Folha de S.Paulo, o psicanalista Contardo Calligaris escreveu que somos criados para as tarefas extraordinárias e o cotidiano nos parece "frequentemente como uma diversão não autorizada".
O pressuposto é que as tarefas corriqueiras estão sempre no plano "ordinário". Banal, portanto. Crescemos com a ilusão de que somos especiais demais para queimar talento com certas responsabilidades, e por isso espanamos. Temos medo, em outras palavras, de virar um projeto de Homer Simpson, acomodado e estúpido.
Para quem tenta acoplar o trabalho a uma missão, o bicho realmente costuma pegar depois do nascimento dos filhos. É quando precisamos abrir mão ou ajustar (para baixo) os projetos individuais para dar conta da nova (e dura) vida que começa.
Quem optou por não fugir pode imaginar, em seu mais íntimo pensamento, que só não atingiu a glória porque foi atropelado pela vida comum das contas vencendo, os filhos pentelhando, as liberdades condicionadas aos compromissos e (dureza das durezas) os eventos sociais com outros pais.
Seria o fim da linha?
Achava que sim até descobrir que Clarice Lispector escreveu algumas das mais importantes linhas da literatura sentada no sofá, perto dos filhos e com a máquina de escrever no colo. Tinha receio de que eles sentissem sua falta caso ela se trancasse no quarto*.
Os filhos e as tarefas que eles demandam são de fato um depósito de energia sem cheque caução ou garantia de recompensa. Mas, nas brechas de um dia qualquer, é ao redor do quarto, e não do mundo, que a gente percebe, como percebeu um certo poeta, que nossa história pode ser mais bonita que a de Robinson Crusoé.
*Este texto foi escrito na cama, com um olho na Discovery Kids, outro na criança e outro (sim, a física neste caso permite) no computador. Foi tranquilo ou favorável? Não.
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