Lembra do papo muito Black Mirror de ser avaliado em apps? Pois é, começou
O governo chinês pretende cadastrar, até 2020, os quase 1,4 bilhão de habitantes do país em um Sistema Nacional de Crédito Social. Esse sistema analisará dados pessoais dos cidadãos como histórico de pagamentos, publicações em redes sociais, comportamento no trânsito, em jogos online e até cumprimento de planejamento familiar. Tudo isso vai começar barrando passageiros em trens e aviões no país
É basicamente um Serasa da vida social: quem não andar na linha, levará o boletim na testa e não terá vantagens em seleções para vagas em universidade, emprego ou empréstimos. Quem tentar furar a bolha será fatalmente condenado ao isolamento e poderá ser rebaixado no ranking (e ser considerado desonesto pelo governo).
Ótimo, diria o leitor apressado, cansado de levar golpes na praça e invejoso da iniciativa de uma ditadura que controla até o acesso à internet naquele país.
Quem sentiu o cheiro da encrenca, porém, deve estar se perguntando quem controla o controlador, quem tem autoridade para julgar conduta social, quem pode determinar o que é socialmente aceito ou não. O gosto musical seria um critério? A timidez seria condenável? E o excesso de extroversão? E se minha avaliação for afetada por um mal-entendido? Quais os mecanismos de defesa caso eu seja alvo de uma campanha de boicote pelos motivos mais fúteis?
Como tudo, condutas reprováveis ou não são questões subjetivas. Muda conforme gosto e a época. Para o padre Fábio de Melo, por exemplo, as pessoas podem ser analisadas a partir da forma como se servem no bufê. No Twitter, ele disse manter distância de quem encosta a concha de feijão no arroz que já está no prato e a devolve com grãos grudados. Se vocês estivessem na mesma fila do quilão, que nota receberia?
Se você concluir que, meu, isso é muito Black Mirror, parabéns: você entendeu o espírito da coisa.
A série da Netflix, que leva a um futuro distópico as consequências daquilo que já vivemos, é a versão mais atualizada do que entendemos por terror.
Um dos episódios, chamado "Queda Livre", é justamente uma suposição de como seria uma sociedade na qual as pessoas podem avaliar pelo celular a conduta de amigos e conhecidos na vida real.
Naquela sociedade, todos são irritantemente simpáticos uns com os outros. Quanto mais pontos, maior o prestígio, e quanto mais prestigiados, maior o peso da avaliação. A busca por notas transforma qualquer gesto em uma grande encenação.
A avaliação serve como nota de corte para a vida: quem tem nota alta ganha desconto para pagar pelas melhores casas, e quem não atinge desempenho mínimo não tem sequer assento garantido no avião. Qualquer alteração de voz rende rebaixamento de nota como punição.
O resultado é o predomínio de cidadãos dóceis, superficiais, falsamente satisfeitos. As notas, no fim, servem como um exercício de higienismo. Beneficiam justamente quem já ocupa o topo da pirâmide.
Em resumo, se já não somos suficientemente uma sociedade hierarquizada, repleta de áreas VIPs, cercadas de miséria por todos os lados, com cidadãos obcecados em obter prestígio em tantos campos simbólicos (Fama? Dinheiro? Talento? Sobrenome? Convites para festa? Likes?), por que não dar ao governo ou a quem quer que monitore nossos passos o poder de colocar na nossa testa o quanto valemos?
Embora tudo tenha conspirado contra, a humanidade só caminhou das cavernas até aqui porque precisou transformar, em algum momento, nossa condição contraditória, errática, insegura e imprevisível em perdão, compaixão, amizade, gratuidade. O resto é delírio autoritário, de controle e exclusão, que a tecnologia está cada dia mais perto de tornar real – numa proporção que, acredite se quiser, ainda não atingimos. Esforço para isso não faltou.
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