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Matheus Pichonelli

O antibrasileiro não aceita que Neymar não esteja servindo caipirinha

Matheus Pichonelli

27/06/2018 04h00

Foto: Reuters

De quatro em quatro anos, o brasileiro entra numa gangorra emocional perigosa entre a euforia e o desalento. O calendário tem culpa nisso: mal curou a ressaca da Copa, ele é bombardeado por notícias e correntes sobre nossos males eleitorais. É como sair de uma bebedeira e acordar no dia seguinte com a responsabilidade de escolher um novo Congresso, um novo governador, um novo presidente.

É muita responsabilidade para tão pouca autoestima.

Vai ver por isso a passionalidade política é tão parecida com a manifestada pelo torcedor na arquibancada. Por aqui, nada pode ser mais passional do que nossa aversão a qualquer engajamento político; uma versão comodamente escorada no suposto cansaço com essa "palhaçada toda" – repare como o xingamento pode ter como alvo a seleção brasileira ou a classe política de modo geral.

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Na confusão, morremos abraçados aos clichês mais autodepreciativos. "Esse país não vai pra frente", "Tem coisa que só acontece por aqui", "O pior do Brasil é o brasileiro", "Em Brasília só tem ladrão", "Só passamos vergonha lá fora".

A Copa do Mundo é um bom termômetro do nosso humor, e tem sido assim desde quando Nelson Rodrigues diagnosticava, já nos anos 1950, o nosso complexo de vira-lata. A expressão ajuda a entender o apego à baixa-autoestima e ao derrotismo do nosso "narciso às avessas".

Se quiser reconhecer um, basta reparar na postura de quem faz selfie nos metrôs da Europa, mas vocifera contra faixas de ônibus, de ciclistas, pedestres e limites de velocidade da própria cidade.

Dias atrás, escrevi por aqui sobre os patrulheiros que tentam sempre, e especialmente em ano de Copa, minar nossas pequenas concessões à alegria, como um grito de gol. Fui solenemente criticado por um leitor que me avisava: temos outras prioridades, não é hora de festa. A coerência do sujeito era uma foto em seu perfil: o símbolo do Cleveland Cavaliers, uma das maiores equipes do basquete dos EUA.

Onde estivesse, Nelson Rodrigues sorriria satisfeito: diria que os vira-latas até acreditam em heróis, mas apenas nos que latem longe daqui.

Nós, por outro lado, estaríamos condenados a lamber nossas feridas; mal podemos encarar os estrangeiros de igual para igual, e tudo porque, em vez de nos recolher à insignificância, saímos por aí organizando festas populares nas arquibancadas em dias de jogo e nas avenidas durante o Carnaval.

Os antibrasileiros tampam o nariz diante das manifestações populares e torcem para que tudo dê errado para poder seguir xingando e justificando aquela vidinha besta e largada no sofá. O sofá, para o antibrasileiro, é arquibancada com visão privilegiada de quem acredita que todos os problemas nacionais nascem e morrem no pagode, na Anita ou em Pabllo Vitar; de lá ele julga e condena o sucesso alheio (para ele, sempre resultado de uma fraude) e sente orgasmos dizendo "eu avisei" quando um conterrâneo falha, inclusive o narrador que adoramos odiar.

O fetiche por tudo o que não fala português, com a exceção de Cristiano Ronaldo, é um caso para estudo. Ele diz invejar a seriedade europeia, mas ignora que o presidente de uma montadora alemã "top" está preso por manipular dados de emissão de poluentes; admira a eficiência asiática mas esquece que os países de lá também enfrentam ou abafam escândalos políticos; bate palma para o modelo americano, mas não entende como um país tão avançado elege um boquirroto como Donald Trump.

O antibrasileiro jura que só aqui existe burocracia e excesso de encargos, que tudo conspira contra o seu sucesso e que existe em nosso DNA uma indisposição patológica ao trabalho, como se nos países avançados, como ele gosta de dizer, o direito a férias, descanso e remuneração por serviço extra não fossem sagrados.

O discurso é um misto de má vontade e desconhecimento – não de outros países, mas do nosso.

No futebol, tudo isso deságua ao menor sinal de fracasso, prontamente atribuído à nossa malandragem, ao nosso excesso de vaidade, aos nossos jogos de cena, às nossas tentativas de ludibriar os juízes, ao nosso choro mal disfarçado. Pouco importa que tudo isso acometa igualmente as outras equipes: o nosso esporte favorito é encontrar culpados por todas as nossas misérias, as existentes e as inexistentes, as reais e as inflacionadas.

A bola da vez é o Neymar, como já foi o Romário, o Ronaldo, o Garrincha, o Pelé. Todos exemplos notórios de quem rompeu, pelo futebol, um destino quase certo.

Torcer, claro, não significa se render ao ufanismo vazio e acrítico. Mas algo me diz que, no fundo, o antibrasileiro não aceita mesmo é que um menino marrento de cabelo pintado e tipo petulante, milionário e namorado da atriz mais bonita, não esteja, como tantos, servindo caipirinha para ele enquanto discursa sobre as mazelas nacionais.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.