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Matheus Pichonelli

Você sabe o que é transtorno de adaptação? Eu vivi e vou contar para você

Matheus Pichonelli

14/09/2018 04h00

Foto: Gety Images

Falei, falei, falei. Não sei por quanto tempo eu falei. Sei que saí da clínica com um pedido de encaminhamento para a psicoterapia, com uma guia onde se lia: transtorno de adaptação.

Desde então, tentamos, no plural, entender o que preciso fazer para me adaptar. Voltamos ao princípio: me adaptar a quê?

A busca por respostas, como sempre, leva ao Google: "Transtorno de adaptação ou transtorno de ajustamento é um transtorno de ansiedade caracterizado por sintomas depressivos e ansiosos que persiste por mais de três meses resultante do impacto psicológico de um evento estressante. Diferencia-se do luto normal pela persistência e pela intensidade do prejuízo funcional e social".

Busco algum evento traumático no passado recente para entender por que, às vezes, não quero sair da cama. Em vão. No meu verbete, os sintomas seriam resumidos como uma sensação constante de frequentar uma festa à beira da piscina vestindo terno e gravata.

Por quê?

Porque, diz alguém que fui há pouco mais de uma década e deixei de ser, o mundo para o qual você se preparou deixou de existir. Fiquei barroco muito antes do que previa.

A sensação me conecta com meu avô, que trabalhou a vida toda na linha férrea da nossa cidade e era chamado de chato quando se negava a sair de casa. Não sei quantos anos ele tinha quando viu pela primeira vez um  automóvel ou a primeira TV a cores. O mundo dele morreu enquanto ele envelhecia, juntamente com as ferramentas que guardava em casa e as peças do presépio que deixou de montar na frente do quintal nos últimos anos de vida.

Quando aquela casa foi vendida, e os novos donos construíram no lugar um portão e uma piscina, percebi que já não eram as memórias dele que haviam sido enterradas. Eram as minhas. E meu lugar na cidade onde morei por 18 anos se tornou, então, uma foto desbotada na parede.

Não, não foi em 1952 que entrei na faculdade. Foi em 2002. Passei oito anos até terminar dois cursos entre a poeira de livros, folhas de xerox, pilhas de jornais, revistas, velhos filmes em VHS, novos DVDs, laboratórios de informática e internet discada.

Guardo parte dessas tralhas num quarto da casa que só eu frequento. Na era do streaming, meu filho olha para meus CDs como quem observa um animal fossificado. Jornal na porta de casa é um tijolo do século passado. Revisteiro virou peça de museu. Cinema de rua é programa de velho.

Na minha cabeça, faria a vida como escritor ou repórter de jornal. O impresso era uma referência: ele hierarquizava as notícias, pautava o debate público e reservava espaços a partir de valores como relevância e responsabilidade.

Democracia e respeito ao contraditório pareciam pilares construídos pela geração anterior que superou a ditadura – pilares que a minha geração fracassou miseravelmente em preservar ou impedir que fossem atacados por discursos de ódio que agora rendem voto, agressões e paixões das mais absurdas.

Não que o mundo há uma década e meia fosse mais ponderado. Programas como Banheira do Gugu, Ratinho, Videocassetadas, policialescos e outras apelações já faziam qualquer coisa por audiência. Mas bastava desligar a TV para encontrar abrigo no mundo analógico como quem pede refúgio. Ou abraço. Imaginava que lá estava nosso futuro. Mas estava o passado, como a ferrovia do meu avô, os táxis e os discos de vinil.

Não sabia (de nada, inocente) que tudo convergiria para o digital. Os debates e os bate-bocas. As notícias e as Fake News. As crônicas e as correntes de WhatsApp.

O problema dessa convergência, como lembra minha amiga Safira Lyra, psicanalista e psicóloga, é que agora, até chegar nas informações de fato relevantes em redes como o Facebook, precisamos passar por um grande corredor tóxico de notícias rasas, passionais, pesquisas indutoras e testes psicológicos que servem para traçar e produzir mais informações sobre nós mesmos.

Nessas redes de flutuação constante precisamos fincar nossas bandeiras com o que resta do que fomos um dia. Mas quanto mais escrevo, menos leio. Quanto mais falo, menos ouço. Desaprendi a ficar dois minutos em silêncio num café sem ser notificado por algo que acontece no mundo e que escapa completamente do meu controle e entendimento.

Não consigo avançar em duas páginas de livro porque livros se tornaram objetos descartáveis como ferramenta de compreensão em um mundo que pede respostas rápidas e ações em vez de reflexões, como se os dois movimentos estivessem divorciados para sempre. Isso talvez explique nossa incapacidade de pensar saídas melhores do que dizer "bate, prende e arrebenta" no meio de uma eleição.

O mundo para o qual me preparei está morrendo. O mundo que emerge exige adaptação. Eu só tenho 35 anos. Como não dormir, se dormir, sem sonhar que estou de terno à beira da piscina?

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.