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Matheus Pichonelli

O que deu na cabeça dos brasileiros que resolveram odiar Marielle Franco?

Matheus Pichonelli

16/10/2018 04h00

Reprodução Facebook

Sete meses depois, ninguém sabe quem, a mando de quem, nem as razões que levaram ao assassinato de Marielle Franco, vereadora carioca executada em 14 de março, aos 38 anos, quando estava no banco de trás de um automóvel no Rio, com quatro tiros na cabeça. Seu motorista, Anderson Gomes, também foi atingido pelos disparos e morreu.

Quem matou Marielle não conseguiu matar sua memória. Ela virou símbolo de resistência. Teve o nome espalhado pelas ruas. Quatro de suas amigas que trabalhavam em seu gabinete foram eleitas deputadas, uma delas federal. Em 2019 Marielle será tema de samba-enredo da Mangueira – para desespero de quem se esforça para silenciar sua história.

"A canonização dela já saiu?", ironizou, no Facebook, um eleitor (sim, eleitor). "Por que não escolhe a professora que morreu protegendo os alunos?", escreveu outro. "Dia de homenagear morto é finados, não carnaval". "Por que a Mangueira não faz campanha de arrecadação de alimentos?"

O ódio a ela se espalha como rastilho desde o dia de seu assassinato. Nos grupos de WhatsApp, amigos e familiares demonstravam já na época a disposição em minimizar o episódio.

No Facebook, teve gente que se deu ao trabalho de pegar a foto de uma mulher grávida e dizer que se tratava da vereadora ao lado do pai da criança, um suposto traficante. Era uma clássica Fake News, divulgada até mesmo por uma desembargadora que garantia: o crime era acerto de contas entre bandidos.

Um candidato a presidente que tem no combate à criminalidade sua bandeira eleitoral se negou a fazer comentários sobre o assassinato porque sua opinião seria "polêmica".

Já na campanha, dois homens rasgaram uma placa em homenagem a ela, posaram para fotos e viralizaram no esquema oclinhos "turn down for what". Um deles se tornou o deputado estadual mais votado no Rio.

Reprodução – Instagram

Todos parecem se esquecer que a vereadora que denunciava a conduta irregular de policiais militares também atuava em favor de policias vitimados pela violência no estado — e isso, por si, já desmente o maniqueísmo bizarro que tentam nos vender para ganharem nosso voto nesta eleição.

Para entender tanto ódio contra sua memória, é necessário recorrer ao pronunciamento de Marielle no Dia da Mulher, na Câmara dos Vereadores, pouco antes de ser executada. Na ocasião, ela classificava o momento político atual como um momento de fragilidade democrática e citava uma série de dados sobre violência contra mulheres, entre eles o espantoso índice de 12 assassinados e 13 estupros diários registrados no Brasil.

Enquanto falava na tribuna, uma voz masculina tentou interrompê-la. "Tem um senhor defendendo a ditadura e falando alguma coisa contrária a isso? Não serei interrompida, não aturo interrupção de um cidadão que vem aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita", respondeu.

A presença de Marielle na tribuna era duplamente incômoda. Incomodava por uma questão de representação: a presença de uma mulher negra, periférica e lésbica na Câmara era a quebra de uma ideia atrasada de que homens públicos são homens ilustres e mulheres públicas, prostitutas.

Reprodução – Facebook

Sua presença ali desmoralizava a narrativa de que mulher, para ser respeitada, precisa ficar em casa, dependente, sem voz e sem destino a não ser obedecer marido e cuidar do lar em troca de proteção, como um vaso. Marielle não só não aceitava esse papel figurativo como não aceitava ser interrompida, invertendo uma lógica hierárquica predominante no país. E isso, para quem está acostumado a ser servido e não servir, é uma afronta.

Ela também incomodava porque, no Brasil, quando se fala de violência contra a mulher, tema de seu último discurso, fala-se sobretudo da violência cometida por pessoas próximas: 70% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes; 24% dos agressores são pais ou padrastos e 32%, amigos ou conhecidos delas.

É sobre esse Brasil composto de "homens de família" com as mãos sujas de sangue que falava Marielle — e silenciá-la é uma tentativa de silenciar a culpa dos crimes quase sempre sem punição.

O Brasil que ofende Marielle é o Brasil que não tolera se olhar ao espelho para não se ver ou se identificar com o criminoso.

Que os adversários políticos de Marielle ajam dessa forma é compreensível, embora lamentável. O que não dá para entender é por que o brasileiro comum acaba compartilhando essa manifestação clara e "terceirzada" de ódio e desprezo. A impressão é que muita gente está comprando discurso político como sentido para a vida — ou para justificar uma vida repleta apenas de frustração e limitação, sem imaginação ou possibilidade de ir além, como ela foi.

Por isso Marielle não pode ser exemplo para boa parte da população enjaulada no próprio medo. A liberdade que ela ainda representa é  perigosa demais para quem, no fim das contas, deseja apenas que tudo mude para que tudo permaneça como está: um mundo onde uns mandam, outros tantos obedecem, e os que contestam são silenciados. Serão?

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.