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Matheus Pichonelli

De que serve solidariedade de fim de ano se não estamos nem aí o ano todo?

Matheus Pichonelli

06/12/2018 04h00

Foto: Getty Images

O ser humano é um animal fantástico. Fala de si até quando demonstra solidariedade a alguém. Inclusive nos discursos de velório.

Nas homenagens, então, a coisa sai do controle: nos aniversários, celebrações de casamento, anúncios de promoções ou premiações alheias, tem sempre alguém correndo ao Facebook para contar a todo mundo como a pessoa foi importante para ELE, como deu ensinamentos para ELE, como foi fundamental para que ELE conseguisse superar as barreiras e brilhar na vida e por aí vai.

Perto do Natal, somos todos invadidos pelo espírito da solidariedade virtual. É como um sprint de maratonista: tentamos sempre, na velocidade, compensar na reta final o que não fizemos no resto da prova.

Dias atrás, testemunhei a emoção descrita por um sujeito que pela primeira vez doou um brinquedo para uma criança antes do Natal.

No relato, ele contava como se arrepiara, como todo esforço valia a pena, como se sentia renovado, como diante daquela realidade seus problemas pareciam menores, pueris, entre tantos outros milagres que pavimentavam sua maratona até o céu.

Parecia um check list para contar que, por trás daquela carcaça cansada, havia um coração puro e esperançoso. Da criança nada descobrimos: nem o nome, nem quem eram seus pais, nem a idade, nem quais eram seus sonhos, suas vontades, os perrengues para chegar à escola ou mesmo se estava matriculada.

Quem se importa?

O doador, pelo jeito, parecia ocupado demais em zerar a culpa e lustrar o bom mocismo após passar o ano praguejando contra políticas de distribuição de renda e minimizando chacinas promovidas perto de onde o patinete doado deslizaria.

Nada contra a solidariedade de fim de ano. Tenho até amigos que praticam. Inclusive sou adepto.

Mas de que serve essa solidariedade se não demonstramos a mesma preocupação com as contingências de grande parte da população a quem negamos a subjetividade e amassamos feito baratas toda vez que fazemos pouco caso de seu sofrimento: a ofensa sofrida ("mimimi"), a diferença salarial ("coitadismo"), o parente encarcerado há anos sem direito a julgamento ("é problema deles"), a bala perdida a caminho da escola ("basta querer para se formar"), a retirada do atendimento médico, ainda que precária, na quebrada que ninguém quer atender ("vai pra Cuba"), o deboche de quem só reconhece o sofrimento do patrão ou a ignorância de quem associa Bolsa Família a preguiça ou ausência de vontade de trabalhar.

Da infância, trouxe para a vida adulta a ideia de que o Natal é, de fato, uma época propícia a luzes e cantos; é tempo de colocar os pensamentos em dia para ver as coisas com calma, lembrar do ano que passou, agradecer, reunir amigos, lembrar os que se foram, distribuir abraços, lembranças, cartões, desejar a outros o que temos de melhor, respirar fundo, pegar fôlego e… virar a chave.

É a época também de nos entender um pouco melhor, e de fato aproveitar a boa vontade para um exame mais cauteloso da nossa própria consciência.

Se nossas boas ações são publicizadas, elas talvez tenham algo a dizer sobre nós, nossas culpas, nossas compensações e nossa ilusão: a ilusão de dourar a realidade sem promover transformação. E transformação requer uma noção básica sobre nosso próprio privilégio e as barreiras entre nosso lugar e o lugar do outro.

Não é fácil permanecer humano em cidades como as nossas, onde sobreviver é a prioridade e viver, um luxo; onde passamos horas no trânsito e distribuímos cotoveladas no trabalho para, com a língua de fora, garantir nosso lugar entre muros, cercas e eletrificações.

Passamos boa parte do ano respondendo a estímulos, como máquinas que apenderam a se comunicar pelo modelo binário das redes sociais: ou curtimos ou descurtimos, ou seguimos ou deixamos de seguir; ou amamos ou odiamos.

O sorriso de alguém agraciado com nosso presente, nosso panetone ou nossa cesta de Natal que não vamos usar pode ser muito importante para lembrar que existem muito mais coisas entre o céu e a terra do nosso umbigo.

Falta garantir também que esses sorrisos agradecidos não sejam atravessados por nossos tratores, nossas balas, nossos discursos e nossas indiferenças no resto do ano.

Sobre o autor

Matheus Pichonelli é jornalista reincidente e cientista social não praticante. Trabalhou em veículos como Folha de S.Paulo, portal iG, Gazeta Esportiva, Yahoo e Carta Capital. Araraquarense, desistiu de São Paulo após 12 anos e voltou a morar no interior, de onde escreve sobre comportamento, cinema, política e (às vezes) futebol.

Sobre o blog

Este blog é um espaço de compartilhamento de dúvidas, angústias e ansiedades vivenciadas em um mundo cada vez mais conectado, veloz e impessoal.